Ópera no Marajó provoca por seu ineditismo e brilha por sua juventude

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Texto e fotos: Paulo Atzingen (de Soure, Marajó)

Um produto que foge do script. Não estará no programa de domingo, nem nas prateleiras dos supermercados, muito menos nas lojas de conveniências. Ele beira a inconveniência, e reveste-se de um ineditismo provocador,  afronta os conceitos tradicionais da  ópera e dos comportados concertos de câmara e mesmo assim não cai no banal, no mercadológico, ou beira a ingenuidade.  Estou falando do Banquete Ópera Festival, que aconteceu no último fim de semana (dias 31 de outubro e 1 e 2 de novembro), em Soure, na ilha do Marajó. Ao contrário, a experiência revela uma força de inventividade próprias de cabeças jovens, efervescentes,  que pensam, sentem e agem, necessariamente nesta ordem. Um banquete cultural, que misturou queijo marajoara, pato no tucupi e filé de vaqueiro com os clássicos La Bohème de Puccni, Carmen de Bizet e a ópera bufa La Serva Padrona, de Giovanni Batistta Pergolesi.  Mas cabem aqui mais detalhes:

Ideia original

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A Fazenda São Jerônimo, no coração da Ilha do Marajó foi o cenário escolhido para este festim realizado dentro de ecossistemas tipicamente amazônicos: igarapés, mangues, praias e mar de água doce, voos de borboleta e guarás recortando o ar criaram o pano de fundo para uma das mais originais criações artísticas dos últimos tempos.

A ideia original, de acordo com o maestro e idealizador do projeto, Caio Cezar, foi trazer de volta para dentro da floresta a mesma inspiração de Heitor Villa Lobos, maestro brasileiro que tem entre suas obras a peça “Floresta Amazônica”. “Uma das bases de nosso projeto foi inspirado na obra do grande e imortal Villa Lobos, que, entre suas obras deu uma importância singular à  floresta, ficando aqui (na Amazônia) durante dois anos compondo”, disse Caio ao DIÁRIO.

O tenor gaúcho Juremir Vieira já fez espetáculos grandiosos ao ar livre, como, por exemplo, no entorno do Teatro Amazonas, mas não dentro da floresta
O tenor gaúcho Juremir Vieira já fez espetáculos grandiosos ao ar livre, como, por exemplo, no entorno do Teatro Amazonas, mas não dentro da floresta

A montagem do espetáculo, segundo Caio, levou cerca de um ano. “Estamos aqui já há algum tempo nos ambientando, criando cenários, estudando o movimento das marés e ensaiando”, acrescentou o maestro.

A obra denominada Banquete-Opera Festival foi acompanhada de uma elaborada gastronomia com degustação e jantares após as apresentações. “Juntamos a ópera com a gastronomia para que elas dialogassem”, afirma o idealizador.

Nunca dentro da floresta

“Fui seduzido pela ideia. Moro em Manaus atualmente e nunca havia visto por lá um projeto como este. Já fiz espetáculos grandiosos ao ar livre, como, por exemplo, no entorno do Teatro Amazonas, mas não dentro da floresta”, afirmou ao DT o tenor gaúcho Juremir Vieira.

Para a diretora artística do projeto, Kátia Brito, a ópera é uma experiência piloto que, segundo ela, terá aperfeiçoamentos e ajustes. “Unimos os talentos já consagrados da música e da gastronomia junto à experiência nativa dos marajoaras e já nos ensaios percebemos que esse encontro foi  aprovado por nós, por sua beleza e profundidade”, afirmou Kátia. “Não temos a acústica e os equipamentos de um teatro convencional, mas temos a soma de elementos sensoriais”, completou.

Para Caio, que tem larga experiência como diretor musical, a ópera é a modalidade artística que se ajusta à grandiosidade do projeto. “Só a ópera poderia ser do tamanho desta floresta”, afirmou.

"Vou ficar com saudade de tudo isso aqui quando for embora”, afirmou a soprano Gabriela Geluda
“Vou ficar com saudade de tudo isso aqui quando for embora”, afirmou a soprano Gabriela Geluda

Opera no igarapé e no mangue

Reunir tanta gente (cerca de 80 pessoas na produção mais 150 pessoas na plateia) em um ambiente natural, praticamente sem energia elétrica e máquinas próprias para tal é uma verdadeira operação de guerra. O conjunto de óperas foi dividido em três grandes atos, cada um em dias e horários diferentes.  O primeiro, à noite, descendo em canoas pelos igarapés da fazenda São Jerônimo e sendo surpreendido por cantoras líricas em meio ao rio e à margem do igarapé. O segundo, à tarde do segundo dia, uma ópera em meio ao mangue com elementos da cultura local como caranguejeiros e coletores de açaí, e o terceiro, na manhã do terceiro dia, uma ópera-bufa, com parte dela traduzida para o português, que emocionou e envolveu a pequena comunidade local.

O regente da orquestra, maestro Guilherme Bernstein e parte de sua orquestra da Fundação Carlos Gomes
O regente da orquestra, maestro Guilherme Bernstein e parte de sua orquestra da Fundação Carlos Gomes

Som puro

Para o barítono Alessandro Santana, que fez o papel do patrão na obra La Serva Padrona, de Giovanni Batistta Pergolesi,  a acústica da floresta não é como a de um teatro, mas o som reverbera mesmo assim, pela força do silêncio.  “Um cantor de ópera projeta sua voz de forma mais concentrada e aqui posso utilizar todos os harmônicos. Como não usamos microfone não há equalização, o som é mais puro”, disse o cantor lírico ao DT.

“Chegamos aqui no dia 22 de outubro para os ensaios finais. Acabei me apaixonando pela exuberância da mata, pelos elementos da natureza. Vou ficar com saudade de tudo isso aqui quando for embora”, afirmou a soprano Gabriela Geluda.

Maristela Araújo (soprano), Alessandro Santana (barítono) e Gabriela Geluda (soprano), após a apresentação da ópera bufa La Serva Padrona, de Giovanni Batistta Pergolesi
Maristela Araújo (soprano), Alessandro Santana (barítono) e Gabriela Geluda (soprano), após a apresentação da ópera bufa La Serva Padrona, de Giovanni Batistta Pergolesi

Apoio

A fazenda de 400 hectares e que recebe normalmente turistas para passeios em búfalo e canoas, ficou durante os últimos dois meses com algumas restrições de acesso e serviços para que os artistas pudessem ensaiar. “Trouxemos 15 músicos do Instituto Carlos Gomes de Belém. Além deles, temos as cantoras, o coral, os técnicos, auxiliares, figurantes e pessoal de apoio, somados temos em torno de 80 pessoas trabalhando diretamente com as óperas e os concertos”, enumerou Caio. O regente da orquestra é o maestro Guilherme Bernstein.

Caio acrescenta que o governo do Pará foi um dos únicos incentivadores do projeto até agora com a compra de passagens, hospedagem e serviços de receptivo para os jornalistas que vieram convidados pela Secretaria de Turismo do Estado. “Até então, não captamos recursos para a concretização deste projeto artístico, que tem um custo em torno dos R$ 2 milhões. No ano que vem, traremos o clássico Fausto, (de Johann Wolfgang von Goethe) e até lá mais pessoas, empresas e instituições acreditarão nesta proposta que espanta por seu ineditismo”, fez o maestro aqui uma autoanalise de seu trabalho. Com investimentos próprios e parcerias trazidas de projetos anteriores, o custeio para a presente ópera foi em torno de R$ 860 mil.

Caio César e Kátia Brito (idealizadores do projeto) e Raimundo Brito (proprietário da fazenda São Jerônimo)
Caio César e Kátia Brito (idealizadores do projeto) e Raimundo Brito (proprietário da fazenda São Jerônimo)

Em um momento da história econômica do país em que os olhos se voltam para dentro do território em buscas de soluções mais domésticas para crises de identidade e de baixa autoestima, um manifesto se levanta do mangue amazônico.

* O jornalista Paulo Atzingen viajou para o Marajó a convite da Secretaria de Turismo do Estado do Pará

Confira mais da Ópera no Marajó:

 

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3 COMENTÁRIOS

  1. Espetáculo maravilhoso, lindamente narrado por Paulo Roberto von Atzingen! Que muitos outros espetáculos dessa natureza, sejam apresentados! Parabéns aos idealizadores e a todos que contribuíram para acontecer esse evento!

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