300 mil – Crônica de Osvaldo Alvarenga*

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“É noite. Sinto que é noite

não porque a sombra descesse

(bem me importa a face negra)

mas porque dentro de mim,

no fundo de mim, o grito

se calou, fez-se desânimo.

Sinto que nós somos noite,

que palpitamos no escuro

e em noite nos dissolvemos.

Sinto que é noite no vento,

noite nas águas, na pedra.”

Passagem da noite, Carlos Drummond de Andrade.


Com o bom tempo que fez, no final de semana passado, a Iêda e eu saímos para caminhar. Há muita subjetividade nas regras de circulação, mas considero nossos passeios mais ou menos autorizados. Chamam “passeios higiênicos” aquelas saídas para arejar. Essas podem; desde que nas imediações de casa. Ora, imediações… Nós andamos fácil – antes mais – dez quilômetros numa caminhada. Cinco para ir, outros cinco para voltar; essa distância pode ser considerada “nas imediações”? Não sei.

Fomos, nos dois dias, onde ninguém quer ir. Se são a margem do Tejo e os parques os espaços mais disputados, nós optamos por uma caminhada por vielas, becos e travessas por onde ninguém passa, subimos e descemos ladeiras que todos evitam, atravessamos parques, só de passagem, ruas e avenidas, máscara na cara onde havia gente. E foi assim que fizemos o nosso passeio: até ao Cais do Sodré, depois, pela Rua do Arsenal, cruzamos os Paços do Concelho e fomos à Praça do Comércio, de lá, da Rua Augusta, deserta, até ao Rossio, e aos Restauradores, subimos a Calçada da Glória até ao Miradouro São Pedro de Alcântara, seguimos para o Príncipe Real, então, a Praça das Flores, o Palácio São Bento, voltamos por Santos até às Janelas Verdes e à casa; no sábado. No domingo, atravessamos a 24 de Julho e a linha, fomos pela Av. Brasília até à Estação de Santos, então subimos a D. Carlos I, novamente São Bento, Rato, Jardim das Amoreiras, Campo de Ourique, Jardim da Estrela, Lapa e chegamos em casa. Conferi no mapa: 10,7 e 10,2 Km, respectivamente. Para mim, nada além das imediações.

A caminhada pela cidade vazia de turistas e de incontáveis portas fechadas não é inédita. Vimos igual no ano passado, ao fim do primeiro confinamento, no mês de maio. Surpresa nenhuma. Constatação de um ano de crise sanitária e econômica. Como em 2020, mais uma vez, observamos vários “aluga-se”, “trespassa-se o ponto”, “vende-se” onde, antes, havia lojas tradicionais, bares e restaurantes. É o fim de muitos negócios, trabalho e sonhos desencaminhados. Espanto não houve. A tristeza, hoje, não é menor.

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Em ano tão trágico, quando, depois de dois meses fechados em casa, tendo perto as nossas famílias e amigos só pelo Whatsapp, perguntamo-nos porque viemos para tão longe, porque escolhemos Lisboa? Basta uma saída, uma caminhada pelas redondezas, para renovar o nosso encanto por esta cidade – já diferente daquela em que viemos morar, ainda assim muitíssimo bela e cheia de encantos. Pena constatar que não a vejo como via no primeiro ano em que, sobressaltado, para qualquer lado ou ângulo que eu olhasse, queria guardar aquela emoção. Fotos e mais fotos em cada esquina. Meus olhos acostumaram-se. Nem mesmo a beleza resiste ao cotidiano.

Não viemos foragidos para Lisboa. Nosso auto-exílio não é político. Não foi Dilma, Temer ou Bolsonaro que nos expulsaram do Brasil. Viemos por encanto. Viemos por paixão

Ainda assim, mesmo habituado, a cidade me encanta cada vez que ando por essas ruas. Mesmo arrefecida, a paixão não se perdeu. Embora adaptado, reconheço nessas ruas a graça e a originalidade que nos capturou. Não viemos foragidos para Lisboa. Nosso auto-exílio não é político. Não foi Dilma, Temer ou Bolsonaro que nos expulsaram do Brasil. Viemos por encanto. Viemos por paixão; agora estremecida, talvez, pela intimidade ou, ao contrário, pela ausência; privados que estamos da cidade nestes tempos. Presos num apartamento, ainda que soalheiro e com vista para o Tejo, começo a sonhar com uma casa, nalgum sítio em meio à natureza.

Distraio-me puxando assuntos sem importância. Entretenho você com conversa fiada, exercício meu de alienação. Tento apatia, porque, já chorei hoje com os testemunhos que chegam do Brasil. Sem conciliação possível, sem arranjo, sem norte nem governo, são mais de 300 mil mortos: avós e avôs, mães e pais, esposas e maridos, filhas e filhos, irmãs e irmãos, tias e tios, primas e primos, sobrinhas e sobrinhos, namoradas e namorados, amantes, amigas e amigos que se foram, sozinhos nos hospitais, sufocados à espera de atendimento ou desamparados em casa. Vidas tantas que podiam ter sido poupadas. Muita gente que morreu sem a companhia de um familiar, sem um ente querido por perto e sem o calor de quem se ama. Cessaram sem alívio nem conforto e sem dizer adeus. Milhões permanecem, cheios de dor, com a vida em suspenso, sem ter podido velar seus mortos, sem direito às despedidas.

24 de março de 2021, marco de um ano de tristes dias. Nada pode ter graça, beleza e encanto num dia assim. Eu sinto muito.

***

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