Há reconhecimentos que iluminam não apenas um profissional, mas todo um território. Quando Fábio Góes recebeu o título de Enólogo do Ano da Associação Brasileira de Enologia (ABE), em 2025, São Roque também foi reconhecida. A premiação, inédita para um paulista, simboliza não apenas a excelência de um enólogo, mas a maturidade de uma região que, por décadas, perseverou para afirmar sua identidade no cenário vitivinícola brasileiro.
Por Waleska Schumacher, Haia – Países Baixo
Logo após o anúncio, Fábio compartilhou palavras que traduzem o espírito que move sua trajetória: “Acredito que unir tradição e inovação não é fácil, mas é o que me move. Estou sempre atento a novos vinhos e ao que o mercado está pedindo.”
Há nessa afirmação uma maturidade tranquila, fruto de quem conhece profundamente o solo que pisa e a história que carrega.

E quando falou do futuro, sua visão se expandiu: “Meu próximo desafio é seguir inovando sem perder a essência da tradição da minha família, que já soma 87 anos no vinho. Quero levar os vinhos de São Roque e os novos terroirs de inverno a novos mercados, fortalecendo nossa identidade com qualidade e autenticidade.”
Essas palavras revelam não apenas um projeto, mas um propósito. E ajudam a compreender por que este prêmio inaugura um novo capítulo para a vitivinicultura paulista.

Da tradição à reinvenção: a jornada de São Roque
A Vinícola Góes tem suas raízes fincadas na década de 1930, quando a família portuguesa que lhe deu origem acreditou que São Roque poderia ser terra de vinho. Durante décadas, a vinícola produziu rótulos tradicionais, abasteceu festas regionais e manteve viva a cultura vitícola da cidade.
Nos anos 1990, veio a decisão que mudaria sua história: o plantio das primeiras uvas viníferas. Era o início de uma transição lenta, mas decisiva, que levaria à adoção de técnicas antes restritas a outras regiões.
O passo seguinte veio com coragem e estudo. Fábio explicou de forma quase cronológica: “Começamos com o primeiro vinhedo pensado para a dupla poda em 2011, e o primeiro vinho veio em 2016, o Cabernet Franc Philosophia.”

Minha vivência pessoal
A Vinícola Góes foi uma das pioneiras a adotar os experimentos da dupla poda em diálogo com os avanços desenvolvidos pela EPAMIG. Lembro-me de, em 2013, visitar o vinhedo já com seus dois anos de idade. Outras vinícolas também exploravam a técnica naquele período. Hoje, a colheita de inverno já não é um experimento. É uma realidade consolidada no Brasil, abrindo possibilidades extraordinárias para regiões com climas semelhantes ao redor do mundo. Mas isso é assunto para uma reflexão futura.
Esse movimento marca o nascimento de uma nova era para São Roque e fortalece a identidade de uma região que ousou transformar limitações em potencial.

A colheita de inverno: quando o inverno se torna aliado
A técnica da dupla poda, validada pela EPAMIG, inverte o ciclo natural da videira e permite que a colheita ocorra no inverno, período mais seco e estável em São Paulo. Antes, a maturação das uvas finas era constantemente prejudicada pelas chuvas de verão. A dupla poda trouxe precisão, concentração, equilíbrio e identidade.
O que poderia parecer apenas um ajuste técnico tornou-se uma revolução sensorial:
vinhos mais estruturados, aromáticos e expressivos, capazes de revelar um São Roque surpreendente.
O sucesso foi tão significativo que, em 2025, o grupo lançou a vinícola Philosophia – Terroirs de Expressão, dedicada exclusivamente aos rótulos premium da colheita de inverno. Um gesto que simboliza a consolidação de um terroir e a confiança em seu futuro.

Um destino completo: o parque enogastronômico da Góes
A apenas uma hora de São Paulo, a Vinícola Góes se transformou em um dos destinos de enoturismo mais visitados do país. O complexo reúne jardins cuidadosamente desenhados, espaços de descanso, restaurantes, cafés, lojas, degustações, passeios guiados, colheitas noturnas e piqueniques entre vinhedos. Cada estação oferece um novo convite.
Há ainda um elemento inesperado que torna a Góes ainda mais singular:
as ruínas de uma antiga fábrica de vermute, preservadas em uma área afastada do parque, próximas a um amplo campo aberto, aos vinhedos e a um pequeno bosque que abraça a paisagem.
Essas estruturas, silenciosas e quase teatrais, criam um cenário cinematográfico. São locais que convidam à contemplação e oferecem ambientes perfeitos para eventos, experiências sensoriais, ensaios fotográficos e momentos de pura imersão no território.
Ali, história, natureza e arquitetura dialogam em harmonia rara — reforçando o caráter único e inspirador da vinícola.

Gastronomia que revela o território
Durante minha visita, escolhi o restaurante Vale do Vinho, onde provei um filé ao molho de vinho acompanhado de um aveludado aligot de mandioquinha. Uma combinação que encontrou perfeita harmonia com os tintos intensos da colheita de inverno.
Mas foi a alcachofra de São Roque que me emocionou. Fresca, expressiva e cheia de personalidade, ela revela a força agrícola da região e seu enorme potencial gastronômico. Sem exagero, trata-se de um produto que mereceria, no futuro, uma IGT própria.
E diante dessa alcachofra, decidi ousar. A harmonização escolhida foi com o Cabernet Franc Pétalas Rosé da Góes Tempo, um vinho vibrante e fresco, com notas de frutas vermelhas e um delicado toque herbáceo. Sua vivacidade ressaltou o sabor da alcachofra e iluminou sua textura, criando uma combinação precisa e envolvente.
É realmente impressionante a qualidade dessa alcachofra — um tesouro gastronômico de São Roque.
Finalizei a experiência hospedando-me na cidade e, à noite, desfrutei de um dos grandes vinhos da Góes que hoje integra a linha da vinícola Philosophia: o Concreto Syrah.
Embora a Syrah seja a protagonista da colheita de inverno, Fábio Góes deu um tratamento especial a este rótulo, preservando a pureza da fruta, oferecendo estrutura equilibrada e destacando aromas primários e secundários sem perder frescor.
Sobre o uso do concreto, ele compartilhou: “Vejo o concreto como um estilo diferente. Ele amacia os taninos e deixa o vinho com uma característica jovem. É um vinho frutado — e o mercado está nessa tendência hoje, vinhos jovens e fáceis de beber.”
O resultado no cálice traduz exatamente isso: elegância, autenticidade e uma identidade muito própria do terroir paulista.

Natal entre vinhedos: luzes, música e pertencimento
Visitar vinícolas na época natalina é sempre especial. Mesmo sendo verão no Brasil, a iluminação festiva do parque enogastronômico da Góes transforma a paisagem.
As atrações especiais tornam a experiência ainda mais memorável. O parque se prepara para receber uma das celebrações mais bonitas da região: o Natal da Vinícola Góes. Milhares de luzes iluminam caminhos, corais se apresentam ao ar livre e a música toma conta dos jardins.
É mais do que programação: é um momento de encontro, convivência e celebração.


Onde tradição e futuro caminham juntos
A Vinícola Góes não é apenas um lugar onde se faz vinho. É um território de memória, criatividade e reinvenção.
A homenagem recebida por Fábio Góes não é apenas um prêmio. É um marco. É o reconhecimento de que São Roque encontrou sua voz no vinho brasileiro — e de que essa voz está apenas começando a ganhar o mundo.
Quando o sol se despede atrás do bosque, iluminando os vinhedos e as ruínas ao longe, compreende-se que a essência da Góes permanece intacta. E que o futuro, promissor, vibrante e cheio de personalidade, está em plena construção.
Parabéns às grandes conquistas da família Góes e ao legado que continuam a escrever para o vinho paulista.




