RECEBI DE UMA AMIGA uma dessas cartas modernas, que chegam pelo computador, contando que ela faria uma viagem “maraviwonderful” com o namorado para um lugar desses cheios de natureza, de pernilongos, de céu azul. Em resumo, ela estava mais feliz que porco na lama.
Demorei a entender a razão de tanta alegria por parte da Juju, afinal, ela é cega, não consegue ver nem alma penada em cemitério. Que graça teria, então, viajar sendo incapaz de enxergar as belezuras de um lugar, o rebolado das pessoas, as cores locais?
Pra completar, a companhia da moçoila, o amado, também é prejudicado das vistas, ou seja, não poderia traduzir o “visu” do local visitado com palavras. Seriam dois perdidos no escuro? Afinal, é senso comum (e errado) achar que os cegos só veem o breu.
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Foi então que eu mesmo decidi viajar… na maionese dos meus pensamentos e percebi que o passeio da Juju poderia ser muito mais proveitoso que qualquer outra visita com uma expectativa absolutamente imagética.
Viajar é bem mais que apenas ver, de fato. É se deliciar com o gosto de novos sabores -exóticos, doces, azedos-, é descobrir que os passarinhos podem fazer toadas diferentes, que a areia da praia pode ser mais grossa ou bem fininha, que as flores podem ter odores novíssimos.
E a Juju disse que é capaz, inclusive, de curtir a diferença da intensidade com que o vento bate na cara, o barulho dos carros no trânsito, a graça de um sotaque, a maneira como as pessoas interagem, a organização das ruas, a profundeza do mar. Com tudo junto, ela forma para as recordações muito mais do que imagens de fotografias.
O povo com deficiência, seja ela sensorial ou física, quer, pode e tem o direito ao turismo. A forma como eu vejo o mundo e me divirto nele não é a única possível, relaxante e prazerosa. Quem passeia não leva apenas as pernas e os olhos, leva a boca, o nariz, os ouvidos, a pele, os sentimentos.
Na carta da minha amiga, ela relatou também a surpresa do dono da pousada em que ficará hospedada ao saber que o casal de hóspedes tinha deficiência visual. Ele respondeu assim à demanda:
“Fizemos uma reforma recentemente para transformar a pousada em um ambiente ecologicamente correto, porém nunca pensamos em também criar recursos para atender, por exemplo, os cegos. Queria pedir desculpas pelo fato de não estarmos adaptados para recebê-los. Mas você, com sua maneira de “ver” as coisas, já está me mostrando de que precisa: convívio com pessoas simples, educadas e que tenham amor nos seus corações. Isso nós temos de sobra.”
Boa vontade é bacana para resolver pequenas questões de acesso. Uma cadeira de plástico para os atrapalhados das faculdades motoras tomarem um banho, um quarto com um pouco mais de espaço para o cadeirante não se esfolar nos móveis; informações em braile para quem não vê, noções de Libras para uma comunicação básica para quem não ouve.
Mas, o conceito de acesso universal envolve dar a todos condições de igualdade para que consigam curtir suas vidas e suas viagens da maneira que melhor lhes convier e de forma independente. A história da Juju é só um exemplo para que mais gente abra bem os olhos para isso. (Texto Integrante do Livro Crônicas Para um Mundo Mais Diverso – de Jairo Marques – Artigo autorizado pelo autor para publlicação no DT)
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Jairo Marques é graduado em jornalismo pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e pós-graduado em jornalismo Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP – É colunista da Folha de São Paulo, especialista em jornalismo social, de inclusão, diversidade e direitos humanos.
jairo.marques@grupofolha.com.br