Bahia, de Castro Alves, meu muito obrigado

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Vejo a Praça Castro Alves em três momentos das minhas passagens pela Bahia e sempre, com a Baia de Todos os Santos ao fundo: a vi ao pôr do sol no dia em que cheguei. A vi com um arco-íris que despencava no meio da baia em uma das minhas passagens e a vi também em uma lembrança do passado.

Por Paulo Atzingen*


Da janela do hotel ouço o trio elétrico de Dodô (Nascimento) e Osmar (Macedo) cruzando a Castro Alves de ponta a ponta quando aqui estive em fevereiro de 1980, pela primeira vez. Um som estridente saia daquelas guitarras baianas e Moraes Moreira em seu auge cantava Meninas do Brasil em ritmo de frevo:

Três meninas do Brasil, três corações democratas
Tem moderna arquitetura ou simpatia mulata
Como um cinco fosse um trio, como um traço, um fino fio
No espaço seresteiro da elétrica cultura…
Deus me faça brasileiro, criador e criatura
Um documento da raça pela graça da mistura
Do meu corpo em movimento, as três graças do Brasil
Têm a cor da formosura…

Aos 18, me desmamava das tetas paulistas onde jorrava o Lança Perfume de Rita Lee e me embriagava dos ritmos nordestinos, que me deram um grande abraço,  frevo e axé music, baião e maracatu abriam meu peito para que ele entendesse que as diferenças tornavam a cultura e as pessoas mais fortes, mais interessantes e mais autênticas. Minha primeira vez na Bahia experimentava uma revolução estética e poética. Já ouvia os Longs Plays de Gil, Caetano, João Gilberto, Gal e Betânia e a turma mais de cima,  Belchior, Ednardo, Zé Ramalho.  Sabia que estava na grota rica da criatividade cercado de arquitetura barroca e negras lindas com seus sorrisos amarfinados por todos os lados.

Lembro-me subindo essa ladeira da Castro Alves mochila e cabelo nos ombros cantarolando alguma música dessa tribo afroindiobranco-descendente e feliz da vida com meus 18. Livre, leve e solto, mas pensativo…

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Na Bahia aprendi a ser mais tolerante, adaptável às circunstâncias. Aprendi dormir em rede, dormir na praia, literalmente. Sabia da escravidão e o pelourinho para mim não era um ponto turístico para tirar fotos, mas para lamentar.

Vejo da janela de meu hotel a Bahia de Castro Alves e a Baia dos navegantes.

No passado mergulhava de cabeça e sem entender muito tudo aquilo, me deixava levar pelo sentimento, pela poesia e melodia que exalavam dos paralelepípedos da velha São Salvador. Me envolvia nos braços da morena de Itapoã como se a música de Dorival Caymmi fosse feita sobre medida para uma pessoa.

Hoje, a trepidante Salvador tem seus batuques do Olodum e da Timbalada e é a mais autêntica expressão negra em território brasileiro, como já se escreveu.  Ela abraça todos, sem exclusivismos ou cercadinho. Nunca os movimentos afros e genuinamente autodeclarados “pretos” alcançaram tanta força e organização quanto agora.

Daqui da janela do hotel sei que o preto entrou no baiano pela porta da cozinha e hoje, finalmente, assume sua identidade com a força que a raça tem, assumindo espaços que nem sempre foram seus: a sala, o quarto principal, a varanda.

Se o ritmo do Olodum eriça os pelos e toma conta do coração levando o turista inglês e paulistano a ensaiar uns passos, o falar, o vestir e o receber do baiano torna esse mesmo povo distinto, exclusivo, único no planeta. Se havia um orgulho apenas pessoal em ser preto, ele se expandiu e hoje se espalha pelas manifestações culturais do povo baiano. O ecoar dos atabaques pelas vielas da cidade velha de São Salvador leva com ele o manifesto de direitos sociais duramente adquiridos pela população preta e parda nos últimos 10, 20 anos.

Praça Castro Alves e o arco-íris (Crédito: Paulo Atzingen)
Praça Castro Alves, a Baia de Todos os Santos e o arco-íris (Crédito: Paulo Atzingen)

Brasil real e multiétnico

Mas o que vejo hoje e o que não via há 40 anos atrás? Vejo que aquelas músicas e ritmos que elegi como as que ouviria para sempre, trazia em seu âmago um grito de protesto mais alto que um grito de prazer.

Trazia uma consciência de brasilidade e miscigenação que negava o histórico de poder de minha ascendência branca sobre qualquer pessoa. Obrigado Bahia por me abrir os olhos para um Brasil real e multiétnico.

Aquelas músicas, que entraram nos meus ouvidos de 18 anos,  traziam em seu miolo um questionamento sobre a vida  que escola ou faculdade nenhuma me daria. Traziam um senso de inquietação e justiça que era mais palpável e real que os discursos políticos que ouviria em meu futuro ou agora, em meu presente.

Daqui da janela deste hotel ouço os ritmos e letras deste estado de espírito chamado Bahia ecoar. São hinos de orixás africanos, são cantos de santos cristãos, são poemas de Gil, Caetano, João Gilberto,  Dorival Caymmi, que me entram pelos sentidos do passado. Eles gritam a favor de movimentos afros, de mulheres, de trabalhadores, de gays, de baianas do Acarajé, de estivadores, de lavadeiras, de vendedores ambulantes, de gente que se vê representada, se viu e se verá traduzida toda vez que um trio elétrico (no seu modelo original) passar, mesmo que seja em pensamento, ou lembrança, como agora.

Salvador, 3 de junho de 2023, São Paulo, 3 de julho de 2023


Paulo Atzingen é jornalista e fundador do DIÁRIO DO TURISMO

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