Caça aos Comunistas – por Osvaldo Alvarenga*

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Desde 1975, no dia 25 de abril, Portugal celebra o aniversário da Revolução dos Cravos, aquela que pôs fim à ditadura de Salazar e Marcello Caetano – que durou 41 anos, de 1933 a 1974. Os cravos vermelhos, distribuídos por uma florista aos soldados que guardavam as ruas centrais de Lisboa, tornaram-se símbolo da insurreição. No principal feriado nacional, sentido do patriotismo português, não há paradas militares, desfiles de canhões nem demonstração de força. As pessoas celebram a democracia em contraponto à tirania; a igualdade em oposição à discriminação, a convivência em negação à intolerância. É o dia de exaltar a liberdade.

A ameaça de déspotas iliberais põe em risco o equilíbrio entre vizinhos, haja vista a guerra na Ucrânia, e mostram como a democracia, construída todos os dias ao longo dos anos, é frágil e pode ser pervertida com o discurso demagógico e populista, com a grita ardilosa, obstinada e violenta de falsos conservadores e de dissimulados progressistas, com a propagação de mentiras, com a confusão de espúrias narrativas e com a ajuda do proselitismo de inocentes úteis. Na Sessão Solene Comemorativa do 48º aniversário da Revolução, sutil, o Presidente da República lembrou dessa fragilidade no seu discurso.

O 25 de Abril é de todos, a liberdade não é de esquerda nem de direita, mas há, em Portugal, quem se julgue senhor da festa. Os comunistas – comunistas de verdade, não aqueles dos discursos extremados de quem demoniza os que pensam diferente, mas, sim, herdeiros dos bolcheviques, vetustos como a Sé de Braga, que, aqui, ainda os há – tiveram papel central na queda da ditadura, em 1974. Por isso o merecido reconhecimento, a gratidão e a indulgência de parte dos portugueses. E como tal, são também patronos dessa festa pelo dia da liberdade. Perdidos no passado, o Partido Comunista Português, ainda hoje, recusa-se a reconhecer que a Ucrânia foi invadida pela Rússia e assim, mesmo sem dizê-lo em palavras, respalda o déspota russo.

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Eu, muito menos patriota, pouco ciente da história, confuso com a sequência de ditadores, iniciada em 1926, nascida de um golpe militar que pôs fim à primeira república, e que, vejam só, 48 anos depois, é encerrada novamente pela imposição dos militares, curioso e entusiasta, procurei na internet e nos jornais, onde e quais seriam os principais eventos associados às comemorações de Abril, em Lisboa. Não encontrei em parte alguma menção a desfiles populares. Intuía que os havia de encontrar. Planejei um circuito e saí. Passava aos fundos da Igreja de São Francisco de Paula quando ouvi as dez badaladas; caminhava com urgência para participar da festa, arranjar um cravo e, fantasia minha, ver os comunistas; as bandeiras vermelhas, as boinas com estrela, as camisas de Che e, claro, onde estivessem estampadas a foice e o martelo, me revelariam a sua presença.

Em Santos-o-Velho, vazia a cidade, decepcionei-me. No Cais do Sodré, cafés abertos, muitos turistas, com as floristas não vi cravo algum. Não fui pela Rua do Alecrim, preferi a do Arsenal, central no evento de há 48 anos. Nenhuma menção. Cafés e lojas a abrir. Mesas, montras, empregados, lojistas e turistas de um lado para o outro com suas malas de rodinhas nas calçadas de pedra portuguesas. No Paço da Cidade, a Câmara aberta, entrada livre para quem quisesse ver. Para além dos estrangeiros, mais que eles, alfacinhas curiosos. Não havia cravos, não havia bandeiras. Eu não distinguia os comunistas.

Por toda a Baixa, abarrotada de gente, lojas de souvenires, garrafeiras, bares e restaurantes já abertos, calçadas insuficientes, nenhum cravo, nenhum comunista. Imensos turistas, e agora muitos mais. Na Praça do Comércio, sem manifestação nem palco, sempre os turistas. Na Rua Augusta, habitualmente cheia de artistas de rua, tantas esplanadas na calçada, e, no mais, só turistas. Ali ao lado, na Rua dos Douradores, quase nenhum comércio, quase ninguém com quem cruzar na rua, só carros estacionados. Até o Rossio foi assim: nenhum cravo e nenhuma bandeira. Para onde foram os comunistas?

Enfim, um palco montado. Vazio. No mais, o Rossio como sempre esteve: cafés cheios, mesas que tomam as largas calçadas e, ao centro, gentes, fontes e, lá no alto, alheio à confusão, D. Pedro. São quase só turistas. Ouço sons de alto falantes. Corro aos Restauradores, agora sim, burburinho, palco montado. Cheio. Chamam por pessoas. Não políticos, não manifestantes. Atletas. Observo melhor, tanta gente, camisas de corrida, números colados; cerveja, alegria, selfies e cansaço. Discursos e premiação. Finda a “Maratona pela Liberdade”… Os bares à volta também cheios. Não vejo cravos, não reconheço os comunistas.

Senão na Praça do Comércio, no Rossio nem na Avenida da Liberdade… lógico, as manifestações foram para o Intendente. É uma puxada até lá. Corro, ainda quero ir ao Museu da Guarda Nacional Republicana, onde refugiou-se e, depois, rendeu-se Marcello, à época um quartel, no Largo do Carmo; quero também ir ao São Bento, aos jardins da residência oficial do Primeiro Ministro. Do Largo do Regedor, atrás do Teatro Nacional D. Maria II, alcanço o Largo São Domingos. Os guias e seus grupos tomam por completo a frente da igreja e a porta d’A Ginjinha. Não há cravo nem bandeira. Passo por mulçumanos que, sentados num banco, conversam sobre futebol e falam em bom português. Reparo que os mulçumanos são tão portugueses quanto qualquer outro, quanto os comunistas que eu procuro, quanto os caucasianos do deputado extremista – raça genuína dos portugueses, disse ele (rio-me) – ou quanto eu. Avanço. No Martim Moniz, serão imigrantes aquele que toma banho de sol, aquele que fala ao celular e aqueles que jogam ludo? Passo longe, desvio dos peões na calçada lotada, reparo as roupas que usam, não ouço o que dizem. Ao contrário da Babel, parece, nesta zona, todos se entendem. Mas não levam cravos nem carregam bandeiras.

Finalmente o Largo do Intendente, esperança final. Já passa do meio dia. Vejo o bar. Está cheio. Observo os fregueses: uns chegados da noite, roupas de ontem, cansados, prontos para dormir, tomam a saideira; outros acabados de chegar, frescos como a manhã, fazem o primeiro brinde. Ninguém traz cravos. Ninguém porta bandeiras. Desiludido resolvo explorar outras possibilidades. Alameda D. Afonso Henriques… foram lá as comemorações do Primeiro de Maio, quem sabe? Encorajo-me.

Pela Almirante Reis, os Anjos. Depois, sempre a subir, o Mercado de Arroios e a Alameda. Pouca gente. Nenhum cravo. Nenhuma bandeira. Por cá é feriado. Quase tudo fechado. Onde estão os turistas? Há uma exposição com artigos censurados pela ditadura no antigo prédio do Diário de Notícias, novamente na Avenida da Liberdade. Será o meu destino.

Volto pelo Saldanha, Picoas – ainda vazias as ruas –, sem cravo nem bandeira, e só no Marquês de Pombal que a cidade volta a se agitar. Sigo para a exposição. “Um cravo da liberdade, um euro!”, grita a vendedora ao sol com uma cesta de cravos vermelhos colocada sobre o banco da praça. Ora bem, já não era sem tempo. Sento-me na grama e espero: Eltânia e Cagiano vêm ter comigo. Há muita gente a descer e a subir a avenida, a maioria sai ou entra no metrô. Uns levam cravos vermelhos. Ninguém carrega bandeiras. Não compro o cravo. Não reconheço os comunistas.

Pela Almirante Reis, os Anjos. Depois, sempre a subir, o Mercado de Arroios e a Alameda. Pouca gente. Nenhum cravo. Nenhuma bandeira. (Crédito: Getty Images)

É longa a fila à porta do antigo jornal. Decidimos não esperar. É quase duas e temos sede. Descemos a avenida. Eltânia sabe de um bom lugar para tomar cerveja ao sol. Mais uma, duas, três, muitas mais vendedoras. São portuguesas. São também imigrantes. São muitas cestas de cravos. Locais compram. Turistas também compram. Um grupo de moças e garotos, rápido, sobe a avenida, cruza conosco. Todos vestem camisetas brancas – não leio o que está escrito. Carregam bandeiras brancas e amarelas umas, azuis e amarelas outras. Segundo o meu critério, não são comunistas.

Mais grupos sobem a avenida. Nós descemos em sentido contrário. Carregam bandeiras. Até vi uma grande vermelha, mas enrolada. Não percebo o seu sentido. Uma outra grande. Também enrolada. Essa eu reconheço perfeitamente: é a bandeira de Portugal. Quem é essa gente? Aonde vão? Penso. A conversa entre nós é outra, fico sem resposta. Vamos à cerveja.

Na esquina das Portas de Santo Antão com a Rua do Jardim do Regedor nos sentamos. “Três canecas, se faz favor”; pedimos. Sem demora a Preta trouxe. “Os pastéis de bacalhau são fritos na hora”; ela nos respondeu. Pedimos também. Nossa conversa viajava distante do 25 de Abril. Comemos e bebemos. Bebemos mais e, me achando engraçado, contei da minha cisma com os comunistas. Falamos da revolução.

Ao longe já se via e ouvia a agitação: multidão, megafones, bandeiras. Desciam a avenida, atravessavam os Restauradores, iam para o Rossio. “Vamos?” Quis saber. “Vamos”, decidimos. “Preta, a continha por favor” (a Preta é romena e há 12 vive em Portugal). Ela foi rápida. Prometemos voltar outro dia. Saímos.

Nos Restauradores, agora, palco montado, vazio, sem corredores desce a turba de manifestantes sem máscaras. Juntamo-nos a eles.  Atrás de mim, “não há pessoas dispensáveis”, de fora a fora na rua, escrito em letras vermelhas na faixa azul, branca e amarela. Eles cantam hinos e gritam palavras de ordem: “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”… Mais adiante, à minha frente, bandeiras brancas com o arco-íris, bandeiras coloridas de vermelho, laranja, amarelo, verde, anil e lilás e bandeiras azul e amarela. Não ouço o que dizem. Imagino e aprovo. Sigo a corrente.

Ganho o Rossio rodeado de jovens ciosos da liberdade que têm – grito adiado por dois anos de uma pandemia que ainda, de todo, não cedeu; por uma guerra na Europa sem previsão de término nem consequências; pela ameaça crescente da brutalidade nacionalista, xenófoba e sexista, por tudo isso –, àquelas bandeiras juntam-se muitas outras, de mais cores, até vermelhas, e também algum cravo nos cabelos, nos decotes, nas mãos, nos bolsos das calças e das camisetas; as palavras de ordem multiplicam-se, gritam à paz, gritam pelo povo ucraniano e gritam contra o facismo.

Meu percurso chega ao fim. Em casa Iêda me espera. Volto feliz com o que vi e ouvi, volto feliz com o meu dia. Sim, eu vi alguns rapazes e moças, de mais de dois sexos, com camisas vermelhas, estampas do Che, estrela, foice e martelo. Não sei se eram comunistas. Sei que aquela gente estava lá, no meio da multidão, gritando por coisas que também eu acredito.

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