Texto originalmente publicado no site Turismo Sem Censura – turismosemcensura.com.br – de Fábio Steinberg
Perguntas tem o hábito de não se calar. Uma delas é o que há por trás da súbita decisão da Costa Cruzeiros de interromper uma presença de 72 anos na América do Sul. Ou seja, por que a Costa cancelou a temporada? Para responder esta questão conversamos com graduados atuantes do setor. Garantida a proteção de identidades, eles se metamorfosearam sob o nome de Capitão Corveta. Leia abaixo o resultado.
PERGUNTA – Por que a Costa cancelou a temporada 2020-2021 na região, depois de 70 anos de operação ininterrupta na América do Sul? O que está por trás desta decisão? Por que manteve as operações em outros mercados, como o Europeu? Isto foi realmente provocado pela pandemia, conforme comunicação oficial ou encobre outras questões, e foi usado só como pretexto?
Veja também as mais lidas do DT
CAPITÃO CORVETA – Não posso falar pela empresa, que escreveu uma bela história no mercado brasileiro desde 1948, quando seu primeiro navio aportou por aqui. Mas os sinais de fumaça que encobrem as verdadeiras razões da desistência são visíveis por toda parte. O comunicado oficial da Costa prefere enfatizar a abertura de reservas para a temporada 2021/22 – ou seja daqui a dois anos e passa batido pela questão da desistência neste período. E isto depois de há cerca de um ano ter alardeado o aumento da oferta com três navios. Colocar a responsabilidade do cancelamento da temporada na pandemia é simplista. O mercado não é bobo.
EUROPA PODE?
Como explicar então a a retomada de seus cruzeiros na Europa, que começam com dois navios zarpando semanalmente de Gênova e Trieste? E a provável reabertura das viagens no Caribe? E isso sob persistentes anúncios de protocolos que garantem a segurança sanitária a bordo. Então o que vale para seus mercados fora não servem para o Brasil? Esta estratégia de comunicação deixa a clara percepção de há razões ocultas. Fica no ar até que ponto a desistência da temporada deste ano estaria associada a vendas insuficientes para garantir as operações na América do Sul.
PERGUNTA – Por que tantos concorrentes, como Pullmatur, NCL e Royal Caribbean, têm nos últimos anos desistido do Brasil? O que aconteceu? O problema pode ser atribuído apenas às dificuldades de operar no país ou parte pode ser debitado a decisões estratégicas das companhias de navegação?
CAPITÃO CORVETA – Operar em nosso país é muito complicado. Todos que deixaram de atuar em nossas águas alegaram este fato como principal motivo para a retirada. Mas a resposta é insuficiente, pois qualquer mercado apresenta entraves operacionais. Curioso que anos atrás houve até estudos e tentativas de fixar navios na costa brasileira, sob o inconsistente argumento de que “o Brasil tem oito mil quilômetros de costa e um clima adequado durante os doze meses do ano”. Esta avaliação oficial ignora a precariedade da estrutura portuária e a limitada oferta turística para atender os navios.
DESCOMPROMISSO
Vamos falar a verdade? Nunca houve (e hoje, menos ainda) mercado suficiente para sustentar a operação regular de cruzeiros por aqui. Chegamos a ter mais de vinte navios durante o verão, há cerca de dez anos atrás. Mas bastava o fluxo de férias minguar, e todos retornavam aos seus mercados principais – em geral, o Mediterrâneo. Há um claro descompromisso das companhias com o Brasil e América do Sul, sempre tratados como mercado complementar e sazonal pelas companhias marítimas.
Há vinte anos, havia poucos navios e que cobravam tarifas altas. Com o aumento da oferta e a popularização dos cruzeiros as tarifas tiveram que baixar, e com isto as operações passaram a ser menos atraentes para as empresas. Quem tinha vínculos mais profundos com o mercado, estrutura comercial formada, e clientela cativa, se manteve no país. Já os demais levantaram âncora e se foram. O fato de apenas a MSC se manter no país indica que é possível operar. Portanto, não se trata de culpar a pandemia, mas de uma decisão estratégica de zarpar, e sem garantia de retorno.
PERGUNTA – Por que só a MSC, que agora torna-se monopolista dos cruzeiros no país, não desistiu do mercado brasileiro como as concorrentes? Será que tem dificuldade para perceber as dificuldades, quer honrar compromissos, ou simplesmente consegue enxergar oportunidades que escapam às demais?
CAPITÃO CORVETA – A MSC é uma empresa com uma trajetória de expansão impressionante. Seu setor de cruzeiros, hoje um dos maiores do mundo, é apenas uma modesta parte do grupo. Conta com potente operação mundial de transporte de containers, que vai de vento em popa, em tempos de economia globalizada. A MSC está duplamente presente no Brasil, e recentemente, confirmou a operação para a temporada 2020/21. Os agentes de viagens dessa forma terão produtos para comercializar e os consumidores poderão manter seus hábitos de férias em cruzeiros.
COSTA E MSC
Tanto a Costa como a MSC tiveram oportunidades iguais de escolher entre investir e acreditar no futuro, ou não. Ao abandonar, mesmo que temporariamente, as conquistas do passado e suspender operações e compromisso com toda a cadeia produtiva do negócio (agentes de viagens, receptivos, terminais marítimos, operadores de tours, etc), a Costa tomou uma decisão de altíssimo risco. E sobretudo não oferece argumentos que expliquem tantos esforços para navegar em outros mares, deixando o Brasil a ver navios de binóculos.
PERGUNTA – É possível, depois de dois anos de ausência, a Costa Cruzeiros voltar ao mercado sul-americano? Qual é o preço desta decisão, e como ela se daria?
CAPITÃO CORVETA – A empresa pertence a uma grande corporação, e deve ter fôlego, se quiser, para retomar seus cruzeiros na América do Sul. É difícil saber quais são para o Costa os seus reais mercados prioritários. Em seu sistema de reservas, já aparecem os dois navios programados para o Brasil em 2021/22. Mas até recentemente também constavam os três que acabaram sendo cancelados para o verão 2020/21. Há uma estrutura física de escritório, reservas e vendas montada, dezenas de funcionários, representantes em todo o Brasil.
Hoje, o mercado comenta que a Costa está praticamente sem vendas para os cruzeiros locais e internacionais. Em se confirmando a futura operação 2021/22 haverá alívio entre agentes de viagens e consumidores. Neste intervalo, quem ganha com isto, evidentemente, é a MSC. A empresa se manteve ao lado de sua rede de distribuição e hóspedes brasileiros nesse momento de crise.
PERGUNTA– Na sua opinião, a indústria de cruzeiros no Brasil tem possibilidade de retomada como alguns anos atrás? Quais as forças a favor e contra?
CAPITÃO CORVETA – O Brasil assistiu ao boom dos cruzeiros durante um período em que houve acesso ao consumo das classes B e C. Isso fez proliferar mini cruzeiros, pacotes all inclusive, parcelamentos a perder de vista. O momento é diferente. Há uma crise econômica que limita o volume de consumidores.
Além disso, o número de estrangeiros que vem fazer cruzeiros no país é irrelevante. Nunca houve promoção de nossos cruzeiros lá fora. Este é o problema dos cruzeiros, que de certa forma concorrem entre seus próprios mercados. Enquanto formos considerados apenas complementares vamos depender apenas de hóspedes brasileiros embarcando. E neste momento não há volume confortável.
PÓS-PANDEMIA
Passada a pandemia, nada garante que o poder aquisitivo dos clientes tenha se recuperado com rapidez. Cruzeiros podem se transformar em luxo, um supérfluo em tempos bicudos. Passaremos por uma ou duas temporadas de adaptação pós-pandemia, que joga os navios para o fim da fila na retomada do turismo. E há ainda os testes com os novos protocolos, que vão alterar radicalmente a rotina relaxante a bordo dos navios. Os cruzeiros precisariam se reinventar para reassumir posição de destaque no mercado das férias. Serão necessários talento e competência para criar uma “nova experiência a bordo”. Infelizmente, estes são atributos raros no momento.