Participar de um cruzeiro de expedição é muito diferente de uma experiência em cruzeiro marítimo convencional. Experimentar a Patagônia Chilena e assimilar sua natureza é estar disposto a mergulhar em abismos descritivos e voos narrativos rasantes sobre um mundo praticamente intacto. A linguagem que preciso utilizar vai além da mera descrição de paisagens e impressões triviais tão comuns nos blogs de viagens. Desculpem os iniciantes, não das viagens, já que cada um sabe o tamanho do mundo que carrega dentro de si, mas os facebooqueiros e tuiteiros, que escrevem na proporção do que já leram.
Acordei no Via Australis com torres de catedrais de gelo arranhando as nuvens e um céu ainda indeciso em se fazer pleno. Minha janela era o espetáculo. Estava – fui conferir no mapa – no Seno Almirantazgo, no epicentro da Terra do Fogo. À nossa direita, a isla Dawson e mais adiante avistaríamos a cordilheira Darwin. De propósito, o comandante Rodrigo Navarro navegava lentamente por esse canal, antes do ser anunciado que o café da manhã estava servido.
Tudo era colossal e a primeira marcha que o comandante adotou nesta manhã convidava os ainda sonolentos passageiros a pularem da cama e fotografar. E calar. E pensar: a mesma força que sustenta os homens sobre o solo colocara aquele bloco de gelo sedimentado pelos séculos diante de meus olhos.
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Sai para um dos decks e senti que não estava em ambiente amigável, por mais aconchegante que fosse o interior do navio. A ciência, e sua filha predileta, a física, explica o processo de justaposição de camadas de neve, sobre camadas de neve, sobre camadas de neve formando esse glacial azulado que escorre como lava em direção ao canal Almirantazgo, na Terra do Fogo. Aqui, na minha frente.
A imaginação e sua filha bastarda, a hipótese, defende a tese de que o vento faz a curva no cabo Horn e as correntes marítimas tanto do Atlântico como do Pacífico se encontram por aqui. Somos testemunhos de uma luta titânica entre a força das águas do oeste, que trazem as correntes e ventos da Austrália e a força oceânica do leste, que carrega toda a massa do Atlântico. Aqui os meninos se separam dos homens, porque além dessa luta colossal que serve para entalhar as catedrais de gelo em direção ao céu, um detalhe que vem do sul reforça o que falo: as massas de vento da Antártida esculpem a superfície dos fiordes com a combinação perfeita de hidrogênio e oxigênio e a isso acostumamos chamar de neve.
II
Estar aqui, no epicentro da Patagônia chilena, entre o Estreito de Magalhães e os fiordes Parry é poder experimentar o tamanho das forças naturais que brincam conosco, como se fôssemos bonecos de carne e ossos com roupas impermeáveis e coletes salva-vidas…
As montanhas de gelo desembocam nos canais da Bahia de Almirantazgo e a neve convive com raras gaivotas que se arriscam a sair de seus ninhos.
O bloco de gelo traz um detalhe, que visto de longe, parece insignificante, mas não é: um rio subterrâneo, uma espécie de artéria que tem origem no coração da ilha e que para desaguar no canal de Beagle rompeu, rompe e continuará rompendo o glacial neste próximo minuto e durante o próximo século. É preciso que se cumpra a sina – e a lei da gravidade – de que todos os rios correm para o mar.
Tive que entrar e colocar outras peles e uma roupa impermeável, já que iríamos fazer o nosso primeiro desembarque em solo patagônico.
* O jornalista Paulo Atzingen viajou a Patagônia Chilena a convite da Sky Airlines, Australis Cruzeiros e Integra Group