A viagem é um dos eventos com maior potencial de nos abrir oportunidades. Uma delas, certamente, é a de nos apaixonarmos pela Literatura ao visitarmos cidades que estão vinculadas, de alguma maneira, a grandes autores – especialmente aquelas onde eles nasceram, viveram ou buscaram inspiração.
Além dos museus-casas, que já estão consolidados nos roteiros internacionais e começam a se firmar também no Brasil, existem lugares que embora não tenham esse tipo de instituição, também são capazes de nos despertar o desejo de conhecer as obras dos escritores a eles vinculados, ou de nos fazer entender melhor algum texto já lido.
Um exemplo clássico desse fenômeno é a Cartagena de Gabriel García Márquez, onde o escritor viveu dois por anos e iniciou sua carreira de jornalista. Visitar a cidade é mergulhar no universo de pelo menos duas de suas obras: ‘De amor e outros demônios’ e ‘O amor nos tempos do cólera’. Mais que isso: é penetrar a atmosfera a partir da qual García Marquez construiu o seu Realismo Fantástico.
Outro destino literário internacional é Dublin, que, embora seja mais conhecida pelos pubs do que pelos livros, ocupa o segundo lugar em número de ganhadores do Nobel de Literatura, perdendo apenas para Paris. Como se não bastasse, recebeu da Unesco o título de Patrimônio Mundial da Literatura. E isso ainda não é tudo: além de valorizar e estimular, até hoje, a prática literária por meio de clubes e oficinas acessíveis a moradores e visitantes, a capital da Irlanda foi e continua sendo profundamente vivenciada por seus escritores. Isso faz com que, por um lado, suas ruas, bibliotecas e pubs guardem a memória desses artistas e, por outro, tornem-se cenários de suas obras. James Joyce, autor do famoso romance ‘Ulysses’, costumava dizer com orgulho que se a cidade fosse destruída poderiam reconstruí-la a partir de seus escritos.
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Os paraísos de Jorge Amado
No Brasil, temos uma série de destinos que se encaixam nesse perfil, ou seja, que são cenários de vida e obra de importantes escritores. As cidades litorâneas de Ilhéus e Mangue Seco, por exemplo, ambas na Bahia, nos remetem diretamente a Jorge Amado. A primeira foi paisagem de sua infância e adolescência, fornecendo-lhe inspiração para grande parte de sua obra. Quem visita Ilhéus, pode conhecer o Bar Vesúvio, famoso pelas deliciosas comidas e tira-gostos, ou a nova versão do Bataclan – na época, uma famosa casa de prostituição e de jogos, inspirada no Bataclan de Paris e frequentada pelos coronéis do cacau de toda a região, que hoje funciona como restaurante. Ambos foram imortalizados no romance ‘Gabriela, Cravo e Canela’. O primeiro como bordel da personagem real e literária Maria Machadão – Antonia Machadão, na vida real – e o segundo como bar de seu Nacib, personagem – criado pelo escritor – que vive com a protagonista da história e comercializa, em seu bar, as deliciosas iguarias preparadas por ela.
Mangue Seco, por sua vez, guarda a memória de uma vivência posterior, do período em que Jorge Amado precisou refugiar-se na cidade de Estância, em Sergipe, para fugir de perseguições políticas do governo de Getúlio Vargas, que o acusava de haver participado da Intentona Comunista. Na época, os moradores de Estância veraneavam em Mangue Seco e, até hoje, é mais fácil chegar ao local por Sergipe do que pela Bahia. Ao que tudo indica, foram as dunas de Mangue Seco que inspiraram Jorge Amado a escrever ‘Tieta no Agreste’ e é nessas dunas que a história se ambienta.
Bahia é também onde podemos nos encontrar com a literatura de Euclides da Cunha. Nesse caso, entretanto, o destino é o interior do Estado, especialmente a região de Canudos, um dos principais cenários de ‘Os Sertões’ – obra pré-modernista baseada na guerra que Cunha cobriu como jornalista. Embora a vila construída pelo personagem – real e literário – Antônio Conselheiro esteja há décadas debaixo d’água, resta ainda o lugar da batalha descrita pelo escritor, hoje transformado em museu a céu aberto.
As Ilumiaras de Ariano
Ainda no Nordeste, na Paraiba e em Pernambuco, encontram-se as Ilumiaras – monumentos criados por Ariano Suassuna, ou a seu pedido, para funcionar como espaços de celebração cultural. Entre as cinco já batizadas, duas merecem destaque especial por sua vinculação à Literatura: a Ilumiara Pedra do Reino e a Ilumiara Jaúna. A primeira, localizada em São José do Belmonte, Pernambuco, leva o nome de um dos romances do escritor e teria sido cenário do ritual sangrento – praticado por seguidores do Sebastianismo – que inspirou o enredo do livro. Nessa ilumiara, realiza-se anualmente a Cavalgada da Pedra do Reino, na qual episódios reais e literários são lembrados com a participação da família Suassuna.
Já a Ilumiara Jaúna, ainda em construção, talvez seja a que mais nos aproxima da obra de Ariano. Trata-se de uma releitura das inscrições rupestres da Pedra do Ingá encomendada por ele a seu filho artista plástico Manuel Dantas Suassuna. Mas isso não é tudo. O monumento pode ser considerado a expressão visual do último livro do escritor – ‘O Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores’ –, concebido como uma síntese de sua obra, que alude tanto a elementos dos livros anteriores como às linguagens por meio das quais se expressou: prosa, teatro, artes visuais e poesia.
O sertão de Rosa
Várias cidades de outro sertão, o das veredas, ou das Gerais, no Estado de Minas, nos fazem passear pelas memórias de Guimarães Rosa, começando por Cordisburgo, sua terra natal, passando por lugares como Morro da Garça, Andrequicé, Sagarana, entre outros. Todos esses e muitos mais, cada um a seu jeito, nos fazem lembrar do próprio Rosa ou de uma de suas obras. Cordisburgo, por ser sua terra natal e, além disso, abrigar o museu-casa, que resgata ambientes, reúne objetos e edições especiais, além de contar com guias mirins dispostos a recitar trechos dos seus principais livros; Morro da Garça, por estar atrelado a uma de suas principais obras, ‘O Recado do Morro’. Andrequicé, por ser o município onde vivia o personagem real e literário Manuelzão, da obra ‘Manuelzão e Miguilin’. Sagarana, de maneira diferente dos outros, por ter sido batizada com o nome de sua primeira obra oficialmente reconhecida. Toda a região dos Gerais por ter sido o cenário do ‘Grande Sertão: Veredas’.
Os versos do inconfidente
Na outra parte do estado, a região das Minas, vamos entrar em contato com a Literatura dos inconfidentes, entre os quais se destaca Thomás Antônio Gonzaga, na colonial Ouro Preto. Seus poemas, especialmente ‘Marília de Dirceu’, estão gravados na história, nas ruas e nos casarios da cidade. A história de amor entre dois pastores, que é tema central dessa obra poética, teria sido inspirada na relação do poeta com Maria Dorotéia Joaquina de Seixas Brandão – uma jovem de 16 anos –, bruscamente interrompida pela prisão do escritor após sua participação no movimento conhecido como Inconfidência Mineira.
A memória desses versos e a de sua provável musa estão impressas em vários pontos da cidade, a começar pela casa do poeta, de onde acredita-se que ele enviava bilhetes para sua amada. É preservada, ainda, na Ponte Antônio Dias, conhecida como Ponte do Suspiros por ter sido o local onde, supostamente, Dorotéia recebia e lia os bilhetes de Gonzaga. E aparece, ainda, no Chafariz Marília de Dirceu, batizado assim por estar localizado em uma praça perto da casa onde viveu Dorotéia. Está viva, ainda, no Museu dos Inconfidentes onde se pode resgatar a história desse movimento político e onde Gonzaga e Dorotéia descansam juntos.
Os refúgios de Mário de Andrade
Em contraste com a então pacata Ouro Preto e com algumas das pequenas cidades e povoados citados até agora, o universo de Mário de Andrade é mais urbano e pode ser apreendido em vários pontos da cidade de São Paulo, como a biblioteca e o centro cultural que levam seu nome – esse último instalado na casa que pertenceu ao escritor –, ou o Theatro Municipal, onde ele realizou, junto com Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Victor Brecheret, Di Cavalcanti e Heitor Villa Lobos, entre outros, a Semana de Arte Moderna ou Semana de 22 . Para completar, o viajante mais curioso pode se deslocar até Araraquara a fim de conhecer a Chácara Sapucaia – hoje transformada um centro cultural ligado à Unesp –, que além de ter hospedado Mário de Andrade em diversas temporadas de férias, abriga uma banheira onde acredita-se que ele tenha escrito sua principal obra: Macunaíma.
Difícil escrever um texto como este e não cometer nenhuma injustiça ao deixar de lado autores tão ou mais importantes que os citados. Mas a intenção não é abarcar tudo que existe, e sim alertar os viajantes para essas e outras possibilidades de penetrar no universo de escritores brasileiros que nos sensibilizam, ou podem vir a nos sensibilizar.
Sylvia é jornalista, com mestrado em Letras e doutorado em Filosofia, pela USP. Fez MBA em Comunicação Corporativa pela Fecap e especialização em Mídias Digitais pelas Faculdades Senac. Atuou cerca de 25 anos na grande imprensa, em revistas especializadas e em produtoras de vídeo. Atualmente trabalha com produção de conteúdo e, desde de 2018, escreve e edita o blog Lugares de Memória .