O que a 123milhas fazia era, na prática, uma espécie de pirâmide
Por Deborah Bizarria*
A suspensão de pacotes e passagens promocionais da agência 123milhas gerou indignação e revolta entre os consumidores que foram lesados pela empresa. A decisão afetou viagens já contratadas da linha Promo, com datas flexíveis, que ofereciam preços bastante abaixo da média do mercado. O que deu errado?
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Nesses pacotes, não há data definida ou detalhes, como a companhia aérea, escalas ou hospedagens. O consumidor oferece à agência algumas opções de datas para viajar, enquanto a agência determina a data exata mais próxima da viagem.
A estratégia das agências consistiria em monitorar os preços propostos pelas companhias aéreas e hotéis de modo a encontrar preços mais baixos do que aqueles pagos pelos clientes em promoções ou baixas temporadas. Também poderiam agrupar pessoas que têm interesse em visitar um destino específico durante o mesmo período, tornando possível negociar valores mais baixos com hotéis e companhias aéreas.
Entretanto, o que vimos na prática foi uma espécie de pirâmide: os consumidores pagam um valor abaixo do mercado para um viagem sem data certa no futuro; a agência faz as reservas sem conseguir lucros consistentes e continua a anunciar a modalidade; novos clientes são atraídos pelos preços baixos e pela experiência de quem já conseguiu viajar e o ciclo continua.
Claro que é mais fácil falar depois que o negócio já deu errado. Como apontou o economista Kaushik Basu: o que torna um esquema Ponzi (pirâmide) tão enganador é a falta de um ponto claro em que o colapso ocorre. Se houvesse um momento específico em que tudo ruísse, esses esquemas não seriam tão destrutivos. Ninguém investiria um mês antes do colapso e, sabendo disso, ninguém investiria dois meses antes. Esse raciocínio implacável, chamado de indução retroativa, tornaria improvável o seu sucesso. Em última análise, pode ser vista como uma forma de insanidade coletiva. No entanto, investir em tal esquema não é inerentemente irracional para um indivíduo, porque leva tempo até que a estrutura frágil desmorone.
No caso da 123milhas, os consumidores foram atraídos pela reputação já consolidada na venda de passagens através das milhas. A empresa se solidificou no mercado de turismo, adquirindo milhas não utilizadas de programas de fidelidade de companhias aéreas e as convertendo em bilhetes aéreos, oferecendo aos clientes preços mais baixos. Além disso, tinha uma estratégia agressiva em propaganda e publicidade, tendo sido em 2022 a segunda maior anunciante do país, com o gasto de R$ 1,18 bilhão em espaços publicitários, de acordo com o ranking Agências & Anunciantes.
A presença constante em propagandas aliada a uma forte reputação na venda de passagens através de milhagens deve ter reduzido a cautela dos consumidores diante de um negócio que era insustentável. Se algo como uma passagem para a Europa pela metade do preço for bom demais para ser verdade, provavelmente há grandes riscos envolvidos ou pode se tratar de uma fraude.
Ou seja, os consumidores foram iludidos por uma promessa de viagem barata e flexível, mas acabaram prejudicados por uma empresa que não tinha condições de cumprir o que oferecia. A 123milhas, por sua vez, agiu de maneira irresponsável ao manter uma estratégia que se baseia na captação constante de novos clientes, sem garantir a qualidade dos serviços prestados aos antigos.
Nesse cenário, resta que autoridades como Procon e Senacon tomem as providências cabíveis e monitorem a devolução do dinheiro aos clientes da empresa.
Deborah Bizarria
Economista pela UFPE, estudou economia comportamental na Warwick University (Reino Unido); evangélica e coordenadora de Políticas Públicas do Livres