Deixa eu contar pra você: a Madonna é minha vizinha. Sim. Ela é que é minha vizinha. Não digo que sou eu o vizinho dela, afinal cheguei primeiro à zona. Veja bem, não somos assim vizinhos de porta. Ela nunca veio me pedir emprestada a furadeira e nem eu tenho a ousadia de ir lá oferecer um pedaço de bolo que tenha feito. Na verdade nunca cruzei com ela aqui no bairro. Não importa. Ainda assim a Madonna e eu somos vizinhos.
Ela mora na antiga rua de São Francisco de Paula. Alugou a casa que, dizem os proprietários, inspirou Eça de Queiroz na composição do Ramalhete: “A casa que os Maias vieram a habitar em Lisboa, no outono de 1875″. Não é líquido e certo que a casa seja exatamente essa. Quando escreveu a obra, Eça morava em França e descrevia a Lisboa de suas lembranças. Pela menção da rua, as características das imediações, o trajeto que Carlos da Maia – o protagonista – percorria para chegar em casa, tudo indica, o Ramalhete ficava aqui por perto.
Mas basta reler o início do livro, onde o palacete é descrito em detalhes, para ver que, desculpe Madonna, a descrição não condiz com a casa em que você mora. Dizem os estudiosos (pois claro, há debates entre os estudiosos da obra queirosiana), o Ramalhete é outro. Seria o Solar do Conde de Sabugosa, em Santo Amaro, um pouco mais adiante daqui. O solar pertencia ao conde, muito amigo do Eça, que costumava convidar intelectuais e gente da sociedade para tertúlias em sua residência. Por isso, justificam, o autor conhecia bem a casa e a descreveu na obra como sendo o Ramalhete. Não sei se a Madonna sabe disso.
Seja como for, o Solar do Conde de Sabugosa continua habitado pelos seus herdeiros e talvez por isso, ela, a Madonna, não pode alugá-lo. Talvez, se calhar, ela nem se importasse com o Ramalhete quando veio para cá. Posso apostar que sequer conhecia Eça de Queiroz. Provavelmente procurava apenas uma boa casa, com alma, no centro histórico onde pudesse morar com os filhos e receber os amigos que vêm visitar a cidade. Hoje ela sabe quem foi o Eça. Posso apostar que sim.
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Ando encantado por essas ruas cheias de personagens. Passo praticamente todos os dias na porta do Museu Nacional de Arte Antiga, o Palácio das Janelas Verdes, que pertenceu ao Marquês de Pombal
Ando encantado por essas ruas cheias de personagens. Passo praticamente todos os dias na porta do Museu Nacional de Arte Antiga, o Palácio das Janelas Verdes, que pertenceu ao Marquês de Pombal e onde passou os últimos anos de vida e faleceu a imperatriz do Brasil, Dona Amélia de Leuchtenberg, a segunda esposa de D. Pedro I (IV aqui). Foi na avenida ali embaixo, aliás, às margens do Tejo – a rua não havia em 24 de Julho de 1833, surgiu 45 anos depois resultado de um aterro –, que as tropas liberais do então ex-imperador do Brasil entraram em Lisboa para restaurar a coroa à filha, Dona Maria II. Vitorioso, dias depois, D. Pedro foi assistir à ópera no Teatro Nacional de São Carlos. Esperava ser ovacionado. Foi vaiado por ter declarado a independência do Brasil e também por outras querelas políticas da época. O teatro é o mesmo onde a Iêda e eu costumamos assistir espetáculos.
Lisboa está cheia de histórias; desde a vizinha famosa, passando pelos personagens da ficção até os heróis da nossa pátria, todos juntos no mesmo espaço. E a gente no meio disso tudo quase sempre nem percebe que as pedras das ruas, cada casa, cada arco, cada beco, cada pedaço de chão estão impregnados por três mil anos de civilização. Se você parar um pouquinho, deixar-se ficar um minuto quieto, os fantasmas dessa velha cidade aparecem todos para contar as suas histórias.
Sobre o articulista:
Osvaldo Alvarenga, tem 54 anos, reside em Lisboa e escreve para os blogs: Flerte, sobre lugares e pessoas e Se conselho fosse bom…, sobre vida corporativa e carreira. Atuou por 25 anos no mercado de informações para marketing e risco de crédito, tendo sido presidente, diretor comercial e diretor de operações da Equifax do Brasil. Foi empresário, sócio das empresas mapaBRASIL, Braspop Corretora e Motirô e co-realizador do DMC Latam – Data Management Conference. Foi diretor da DAMA do Brasil e do Instituto Brasileiro de Database Marketing – IDBM e conselheiro da Associação Brasileira de Marketing Direto – ABEMD, dos Doutores da Alegria e, na Fecomercio SP, membro do Conselho de Criatividade e Inovação.