Nunca visitei a Ucrânia, tampouco fui à Rússia. Por insistência da Iêda, considerei conhecer São Petersburgo e Moscou. Já que ficam distantes, pensei, não precisava visitar as duas cidades na mesma viagem. Numa primeira, ao norte, no auge do verão, julho ou agosto, passando por Helsinque, pisando pela primeira vez na Finlândia e, então, de trem, seguir para a cidade de Pedro. A capital russa ficava para outra oportunidade, quando calhasse, noutra época qualquer, quem sabe aproveitando uma promoção nalguma companhia low cost.
Não tínhamos planos. Ponderamos hipóteses. São ideias deixadas para trás faz tempo. Eu não queria antes e quero ainda menos agora conhecer o país de Putin. Sei que a Rússia não se resume ao demagogo que um dia os russos escolheram e que, déspota, hoje, não podem se livrar dele. Sei que o povo, por melhor que seja, com frequência, faz más escolhas – exemplos não faltam. Acontece que o tipo de liderança que cada povo, quando pode, escolhe e apoia também influencia nas escolhas que faço sobre os lugares que quero conhecer.
No meio de tanto horror, algumas iniciativas mexem comigo. Esta semana, ainda agora enquanto escrevo, caravanas de voluntários portugueses partiram e partem em direção à Ucrânia.
No meio de tanto horror, algumas iniciativas mexem comigo. Esta semana, ainda agora enquanto escrevo, caravanas de voluntários portugueses partiram e partem em direção à Ucrânia. Vão nos próprios carros, nos ônibus fretados por cidades ou associações e nos caminhões carregados de doações. Levam mantimentos e trazem pessoas. Vão para Przemysl, na Polônia, vão para Siret, na Romênia, vão para Beregsurány, na Hungria. Não fosse a guerra, provavelmente, nunca ouviríamos falar desses destinos. Viagem assim eu estou pronto para fazer.
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A comunidade ucraniana em Portugal não é desprezível. E vai aumentar: quatro mil e tantos pedidos de proteção já foram concedidos. Desses, até 9 de março, mais de dois mil refugiados da guerra haviam chegado ao país. Cerca da metade era crianças. Entre os adultos, quase só mulheres. O norte recebeu a maior parte. Também da Galícia saem carros, ônibus e caminhões. Mesmo neste extremo oeste da Europa, toda a gente está tocada com o infortúnio dos irmãos europeus de leste. Eu também. Tanto que já nem quero ver as imagens nos telejornais da noite. Já nem quero mais ouvir as histórias que chegam pelo rádio ao despertar.
Guerras, hoje, mundo afora, são muitas. Segundo apurou a Folha de São Paulo junto ao Projeto de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados (Acled, na sigla em inglês), entre 1º de janeiro e 11 de fevereiro deste ano, foram 28 em todo o planeta. Há combates na Somália, na Síria, na Etiópia, na Nigéria, no Paquistão, no Afeganistão, no Azerbaijão, no Iraque, no Iêmen, no Mali, em Mianmar… São cerca de 1140 eventos com mais de 2700 vítimas fatais e milhões de deslocados; como sempre, os mais vulneráveis, as minorias, muito mais mulheres, uma multidão de crianças.
Mexe comigo saber que não tivemos e não temos a mesma consideração com todas as vítimas. São todos nossos irmãos. O que dizer da afeição, ou da falta dela, para com os irmãos africanos, lusófonos como nós.
Mexe comigo saber que não tivemos e não temos a mesma consideração com todas as vítimas. São todos nossos irmãos. O que dizer da afeição, ou da falta dela, para com os irmãos africanos, lusófonos como nós. Deles, das guerras, da fome e das desgraças que por lá passam, quase não temos notícias. Quem vai ao socorro dessa gente? Não me lembro de ter ouvido dos nossos governantes – como ouvi para os refugiados ucranianos – que as nossas fronteiras estão abertas para recebê-los. Não me lembro de ter lido notícia de alguma cidade que se tenha mobilizado para acolher guineenses ou moçambicanos em risco. Para a crise de refugiados de outras guerras, guerras que são nossas também, para os famintos e hostilizados de outros continentes, igualmente fugidos do terror, notícias há quando eles invadem as nossas praias, quando nossos mares são tomados por embarcações diminutas sobrecarregadas de gente à deriva. Alguns foram ao socorro deles. Parte desses são agora julgados pelo Estado italiano, poderão ser condenados por ter ido ao mar resgatá-los, por tê-los ajudado a entrar na Europa. Não nos vemos como esses famintos e acossados de deus e cores diferentes. No geral, falta-nos empatia e humanidade.
Aplaudo a receptividade de todos os líderes europeus para com o povo ucraniano. Exalto a iniciativa de tantos autarcas que criam os meios de ir buscar e de acolher nas suas cidades os refugiados dessa guerra. Parabenizo os empresários portugueses que abriram mais de 13 mil vagas de trabalho exclusivas para os migrantes da Ucrânia. Emociono-me com a diligência da sociedade civil em tantas iniciativas de apoio e suporte a essas pessoas, sobretudo, mulheres e crianças expulsas do próprio país. Fico, de verdade, muito tocado com tudo isso que está acontecendo. Penso até em me juntar aos voluntários e seguir com eles para a Ucrânia – ou para a sua borda. Sinto muito, porém, que o nosso acolhimento não seja igual para todos.
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