A crise envolvendo a operadora de turismo Hurb tem gerado desdobramentos jurídicos relevantes, sobretudo após o encerramento das negociações com a Secretaria Nacional do Consumidor – Senacon. Em entrevista exclusiva ao DIÁRIO, a advogada Renata Abalém, especialista em Direito do Consumidor, expõe os motivos que levaram à frustração do acordo com o órgão e alerta para a falta de elementos que comprovassem a boa-fé e a capacidade operacional da empresa. Segundo ela, a mudança de representantes legais durante o processo e a ausência de garantias concretas foram determinantes para a suspensão das tratativas.
A atuação da Senacon, segundo Renata, foi firme e exemplar, e pode servir como parâmetro regulador para outros casos. Ela defende a responsabilização não apenas dos atuais gestores, mas também de ex-dirigentes e investidores que contribuíram para o colapso da empresa. A entrevista completa, conduzida pelo jornalista Paulo Atzingen, revela os bastidores jurídicos de uma das maiores crises do turismo digital brasileiro. Acompanhe:
DIÁRIO Dra. Renata, como a senhora avalia o encerramento das negociações por parte da Senacon? Quais os principais fatores jurídicos que, em sua visão, justificam essa decisão
Firmar um TAC com a SENACON, ainda mais com o número de consumidores envolvidos e na situação em que muitos já formalizaram reclamação e/ou protocolaram processos judiciais, carece de entrega de documentação comprobatória pela empresa, além da análise de viabilidade operacional, técnica e financeira da possibilidade de se cumprir o estabelecido. A HURB não conseguiu demonstrar nada que indicasse a possibilidade de honrar o instrumento, além do que alterou seus representantes legais, o que, no entender da Secretaria Nacional do Consumidor, seria indício da impossibilidade de sucesso da medida. Estabelecer um TAC significa acreditar e ter evidências da boa-fé da empresa, o que parece não ser o caso da HURB.
DIÁRIO – Em matéria recente publicada no DIÁRIO DO TURISMO (LEIA A MATÉRIA), a senhora mencionou que a empresa utilizou a informação sobre o TAC como uma “estratégia para ganhar tempo”. Esse tipo de conduta pode configurar má-fé perante a legislação de defesa do consumidor?
Sim… totalmente… a empresa apostou nessa estratégia para paralisar o agir do consumidor. Veja bem, quem pensou em ajuizar ação contra a HURB ficou aguardando o TAC. Para mim, indícios claros de que a intenção era ganhar tempo e fazer com que o consumidor “esquecesse o prejuízo”.
DIÁRIO – Quais os riscos legais mais imediatos que a Hurb pode enfrentar agora com a retomada do processo administrativo pela Senacon?
Riscos legais imediatos para a Hurb:
Multas diárias por descumprimento de medidas cautelares: A Senacon determinou que a Hurb apresente, em até cinco dias corridos, informações detalhadas sobre sua situação financeira, incluindo o número de contratos pendentes, valores devidos aos consumidores e a lista de clientes afetados. O não cumprimento dessa exigência acarretará multa diária de R$ 80.000,00 até o atendimento completo das obrigações.
Suspensão de ofertas e comercialização de serviços: Foi imposta uma medida cautelar que suspende a oferta e comercialização de serviços pela Hurb que não tenham data confirmada e segura aos consumidores. Essa ação visa proteger os consumidores de práticas comerciais que possam resultar em prejuízos.
Possível cassação do registro da empresa: O caso foi encaminhado ao Ministério do Turismo, que avaliará possíveis irregularidades na operação da Hurb. Entre as sanções consideradas está a cassação do registro da empresa, conforme previsto na Lei nº 11.771/2008 e na Portaria MTur nº 38/2021.
Sanções administrativas adicionais: A Hurb pode estar sujeita a outras sanções administrativas previstas no Código de Defesa do Consumidor, incluindo multas significativas, suspensão temporária de atividades e outras penalidades aplicáveis a infrações das normas de proteção ao consumidor.
Responsabilização por publicidade enganosa: Declarações públicas do CEO da Hurb, sugerindo a existência de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Senacon, foram desmentidas pelo órgão, que afirmou que o TAC nunca foi assinado. Essas declarações podem ser caracterizadas como publicidade enganosa, sujeitando a empresa e seus representantes legais a sanções previstas no Código de Defesa do Consumidor.
DIÁRIO – O que significa, na prática, um consumidor ter seu direito prescrito nesse contexto? Quais são os impactos para quem foi lesado e não conseguiu recorrer a tempo?
Essa é uma das consequências mais dolorosas e perversas da estratégia empresarial adotada pela HURB: o consumidor, confiando na possibilidade de solução administrativa anunciada — como um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) —, esperou boa-fé onde houve apenas morosidade estratégica, e pode ter acontecido que seu direito tenha expirado pelo decurso do tempo. Essa espera não suspende nem interrompe automaticamente o prazo prescricional, salvo se houver ato formal (como um acordo homologado judicialmente ou ação coletiva com citação válida).
❝Na prática: o consumidor “acredita” que será reembolsado, mas o tempo corre contra ele — e, quando decide ingressar com a ação, descobre que o prazo para isso já passou.❞
Impactos para quem teve o direito prescrito: Impossibilidade de reaver valores pagos: Mesmo que a empresa reconheça o débito de forma informal, o consumidor não poderá mais exigir judicialmente o ressarcimento, salvo se conseguir demonstrar uma causa de interrupção ou suspensão da prescrição.
Barreira ao acesso ao Judiciário: A prescrição não extingue o direito em si, mas a pretensão judicial. Ou seja, o consumidor ainda pode ter razão, mas não poderá mais ser ouvido pela Justiça.
Dificuldade em aderir a ações coletivas posteriores: Se já houve trânsito em julgado de sentença coletiva sem sua inclusão oportuna, ou se sua demanda era de natureza individual e prescrita, pode perder a chance de integrar o rol de beneficiários.
DIÁRIO – A troca de representantes legais durante o processo de negociação pode ser considerada um obstáculo deliberado à transparência? Esse tipo de conduta costuma ocorrer em outros casos de crise empresarial?
A substituição do representante legal da Hurb no curso das tratativas com a Senacon, especialmente em um momento de crise institucional, não é neutra nem irrelevante. Em vez de fortalecer a solução do conflito, esse tipo de atitude mina a confiança do poder público e do consumidor. Pode, inclusive, ser interpretada como estratégia deliberada de evasão de responsabilidade ou de manipulação comunicacional — o que agrava ainda mais a situação jurídica e reputacional da empresa. Sim, a prática de substituição de representantes legais não é rara e não existe dispositivo legal para impedir tal procedimento.
DIÁRIO – Como o caso Hurb pode influenciar a confiança dos consumidores no setor de turismo e nos modelos de negócios baseados em vendas antecipadas?
O caso Hurb se tornou um exemplo emblemático de como a quebra de confiança por parte de uma empresa pode reverberar profundamente não apenas na sua própria reputação, mas também na percepção pública de todo um setor econômico, especialmente um setor tão sensível quanto o turismo. Não é apenas uma crise empresarial isolada. Ele representa um abalo na lógica de consumo baseada em confiança digital, pré-pagamento e promessa futura. Se não houver responsabilização clara e mecanismos de proteção mais robustos, o efeito será a erosão da credibilidade de um modelo inteiro de negócios, com impactos em agências, operadoras, marketplaces de viagem e até programas de milhagem.
DIÁRIO – Do ponto de vista jurídico, quais medidas de proteção os consumidores devem adotar diante de empresas com histórico de descumprimento contratual ou instabilidade financeira?
Diante de empresas com histórico de descumprimento contratual ou instabilidade financeira conhecida, o consumidor pode — e deve — adotar medidas preventivas e reativas amparadas na legislação vigente, em especial no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e no Código Civil.
As principais estratégias de proteção jurídica preventiva são:
- Realizar pesquisa prévia minuciosa tanto do produto quanto do fornecedor do produto;
- Exigir contratos claros;
- Utilizar formas de pagamento rastreáveis e reversíveis;
- Avaliar a existência de seguro ou garantias contratuais;
- Registrar reclamações em caso de irregularidade.
DIÁRIO – A senhora defende a responsabilização dos envolvidos. Isso inclui apenas os dirigentes atuais da Hurb ou também investidores e ex-gestores? Qual é o alcance possível dessa responsabilização?
A responsabilização no caso Hurb pode atingir:
- Dirigentes atuais – responsabilidade objetiva e subjetiva: Os atuais administradores da Hurb são os primeiros na linha de responsabilização, tanto na esfera administrativa (Senacon, Procon, MTur) quanto na judicial (ações civis individuais e coletivas);
- Ex-gestores – responsabilização possível se provada má gestão ou fraude: Os ex-dirigentes da Hurb podem ser responsabilizados, mesmo após deixarem a função, se comprovado que: tomaram decisões que causaram ou agravaram a crise financeira da empresa; participaram de fraudes, manipulações contábeis, omissões estratégicas ou práticas abusivas com consumidores; e assinaram atos lesivos à coletividade ou atuaram com dolo.
DIÁRIO – Há possibilidade de ações civis públicas ou iniciativas do Ministério Público diante dessa violação coletiva de direitos?
Sim, e tomara que isso ocorra. O mercado e as autoridades responsáveis não podem permitir que isso aconteça sem punir severamente a empresa e seus gestores (que tomaram as decisões). Se não houver punição exemplar, outras empresas — inclusive de outros segmentos — podem utilizar a mesma manobra para enganar ou postergar resoluções de crise com seus consumidores.
DIÁRIO – Como a atuação da Senacon neste caso pode servir de exemplo para outras empresas do setor? Acredita que pode haver um efeito regulador mais amplo?
Exatamente como a Secretaria fez: falou ao mercado e tomou as medidas que lhe são cabíveis. Veja, a SENACON fez o que lhe era possível, e agora faz o que lhe é próprio. Para mim, a conduta foi e está sendo acertadíssima.
Renata Abalém, advogada, Diretora Jurídica do Instituto de Defesa do Consumidor e do Contribuinte (IDC) e membro da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/SP
LEIA TAMBÉM:
Hurb e a crise da transparência: nova controvérsia reforça desconfiança do mercado