Os passos dos casais de dançarinos na casa de Tango El Querandi, carregavam meus olhos para o canto do palco, depois traziam para o centro. Não dava para ver todos, concentro-me em um deles. Em um passo brusco, aparentemente violento, o homem joga a mulher para trás como se a abandonasse à própria sorte. Em seguida, iça-a de encontro ao peito, e ao sexo e colam os rostos. As coxas, as pernas, os pés dos dançarinos se juntam e se entrelaçam, caminham lado a lado como em um espelho, uma sombra, acompanhando o bandoneón e param de forma brusca: são dribles no ar, chutes no vento que beijam o palco e acompanham a mística do tango.
por Paulo Atzingen (da Serra das Cabras, Campinas)*
A perna da dançarina sai do vestido vermelho brilhante e é lançada para trás como um coice de uma novilha no cio, como um toque de calcanhar de um jogador de futebol da seleção Argentina em uma jogada de gênio. Era o encontro do Tango com o futebol campeão do mundo naquela noite de 21 de dezembro, em Buenos Aires.
Havia uma felicidade na noite. Havia uma alegria no tango como nunca se viu. A seleção da Argentina chegara na madrugada anterior a Buenos Aires trazendo a Copa do Mundo, o terceiro título mundial da seleção portenha. A cidade vivia um êxtase nas ruas, nos bares, nos lares, nas casas de show.
À medida que eu bebia as taças de Malbec para auxiliar na digestão do ancho servido antes do espetáculo, bebia também a história do tango, do tempo dos bordéis, das costureiras, dos estivadores, das lavadeiras, personagens centrais e marginalizados da capital portenha. O show multimídia descreve as várias fases deste gênero musical: O tango se abraçava com o futebol naquela noite e, no coração de San Telmo, enfiava suas raízes bem fundas e deixava a tristeza de lado.
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Onda
Entre um quadro e outro o espetáculo do El Querandi mostrava-se por completo, como uma onda que vai crescendo em volume e explode contra o peito: enquanto os dançarinos davam corpo ao espetáculo, o piano, o violino, o contrabaixo e o bandoneón geravam a energia.
Piazzolla
O pianista toca a música do subúrbio que alcança os bairros nobres de Buenos Aires na voz de um intérprete de Carlos Gardel. Uma dançarina em um vestido dourado deita no balcão ao meu lado e é abraçada por seu parceiro. O bandonionista, no centro do palco, comanda o grupo e toca um clássico de Astor Piazzola. O cantor rapta o foco e lança no ar a paixão que movimenta as águas do Rio de La Plata. A sua alma de artista e de ator toca a alma da plateia, alguns brasileiros, muitos argentinos. A força feroz do desejo atrai como um imã a atenção das amadas divididas entre dois amantes, todos elegantes, enfiados em seus ternos dos anos dourados.
A força maior do tango, com seu drama e sensualidade, unia-se à força mundial do futebol com sua raça, luta, dor e alegria. Os artistas, os garçons, os argentinos nas mesas viviam essa felicidade misturada, não experimentada desde 1986, no México.
Como a arte
Na parte final do espetáculo apresentam a era de ouro do tango, por volta dos anos 50 do século passado. A sofisticação da dança e da música são as mesmas e os acordes arrepiam, chegam à medula. Tomo minha última taça de Malbec e vejo a beleza do conjunto, a grandeza da obra, a organização da equipe. O contrabaixo faz a base e defende a manutenção do ritmo compassado, cadenciado; o violino e o piano compõem o meio de campo da música e organizam, distribuem os tons e enviam o bandoneón ao ataque. Este avança, dribla, se infiltra, penetra e marca um gol sem bandeira, e sem nacionalidade no coração de todos, como a arte.
Tango e futebol naquela noite de 21 de dezembro, no El Querandi, foram uma coisa só.
Serviço:
Tripadvisor (978) · $$
Peru 302, Capital Federal 1067 Buenos Aires
+54 11 5199-1770
* O jornalista assistiu o espetáculo a convite do El Querandi.
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O tangob fica mais incrível quando descrito por você, Paulo