“Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinando sobre o Amado,
Cessou tudo. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.”
São João da Cruz — Canções da Alma, cântico VIII (1578-1585).
Leio um artigo de Fernanda Câncio, antigo, de agosto de 2019, no Diário de Notícias, sobre os “crentes sem religião”. O artigo, bem escrito e um tanto mordaz, trata do crescimento do número de pessoas que afirmam não ter religião e, ao mesmo tempo, dizem crer em “algo maior”, uma “força”, uma “energia”, uma “qualquer coisa” não nomeada, um “poder superior” que, talvez, justifique a existência — a nossa, e de tudo o mais que nos circunda. A articulista apurou que o grupo dos “sem religião” cresce na Europa e nos Estados Unidos e que já é maioria na França e no Reino Unido. Em Portugal, ironicamente, os novos deístas já formam o segundo maior grupo religioso no país.
O tom crítico, às vezes, sarcástico e, outras vezes, moralista me incomodou, provavelmente, porque penso que sou um desses “crentes sem religião”. Não sou, definitivamente, ateu nem cético. Tampouco tenho fé nalguma doutrina. Não foi sempre assim. Houve uma época em que, mesmo sem o admitir, fui arrebatado. Experiência intensa, de total comprometimento, devoção e entrega. Foi um período rico, base da minha formação, do qual não me arrependo. A fé, apaixonada que foi, consumiu-se, me deixou a mim ou eu a ela. Enlace que terminou sereno; e de que guardo boas lembranças e gratidão. Tenho pena também. É triste que tenhamos nos perdido.
Feliz de quem tem fé. A religião confere sentido à vida, responde às incertezas, oferece consolo, preenche lacunas. Pela minha experiência, para que exista fé, antes, é preciso haver renúncia, absoluta aceitação e infinda confiança: Bem-aventurados os que não viram e creram (João 20:29). Na fé não há espaço para a suspeita; mais, não há espaço para a desobediência. A fé é absoluta. Crer é ter convicção. Não concebo a existência de um meio-crente. Se assim é, como posso eu ter dito que sou um crente sem religião?
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Há religião e há misticismo. Algumas vezes andam lado a lado, mas não as confunda, são práticas diferentes, experiências desiguais. Na religião, o crente toma por verdade um pressuposto, que crê incondicionalmente e observa os dogmas da sua fé e, no serviço litúrgico, busca, e às vezes experimenta, a sublime comunhão. O místico, monástico ou não, indiferente da razão de Deus, em contemplação, busca e às vezes experimenta a mesma graça. A prática mística é solitária, é noite escura sem certezas, independe de cerimônia e de fidelidade a mandamentos. Um crente que não cumpra rituais e nem creia em dogmas não está mais distante ou próximo da revelação do que um crente com religião. Por fim, há ateísmo. São os que creem em nada. Aqueles cuja fé na razão embacia o sagrado.
Hoje, já não é comum eu tratar desse assunto. Não questiono mais a natureza de Deus. E não especulo se algum dia a ciência irá explicar a metafísica da fé. Não penso nessas coisas. Também não penso sobre a presunção de quem, por crer num deus concebido nalgum livro sagrado ou porque rejeita a ideia de qualquer manifestação que não seja explicada pela ciência, faz juízo de valor sobre as crenças alheias. São questões que não me dizem respeito. Importa-me a mim que eu possa, vez ou outra, pôr-me quieto nalgum canto e, silenciado, entregar-me à graça de experimentar a presença de Deus.
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Que delícia começar o dia a ler meu amigo Osvaldo. Andar com fé eu vou, a fé não costuma falhar, já dizia o poeta! Parabéns pela reflexão sugerida.