Os americanos estão abandonando o campo de batalha contra a covid-19 antes de “derrotar o vírus”, como Trump havia brandado meses atrás. A consequência mais provável é uma segunda onda de infecções nos próximos meses
Financial Times
É um momento estranho para se render ao coronavírus. Direita e esquerda, conservadores e liberais – todas as partes do espectro americano abraçaram a linguagem da guerra. A metáfora era claramente superficial demais. “Missão cumprida” só funciona quando existe uma vacina, o que vai demorar ao menos um ano. Mas grandes partes do país, inclusive Donald Trump, estão dando voltas olímpicas.
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Não é de surpreender que Anthony Fauci, a face mais confiável da ciência nos EUA, não seja mais visto perto de Trump. Sua última aparição televisionada na Casa Branca foi em abril. Nesta semana, Fauci disse que a pandemia “ainda não está nem perto de acabar”.
O mesmo não pode ser dito da força-tarefa à qual ele pertence, que está sendo encerrada. Esse sinal não precisa de decodificação. A Casa Branca perdeu qualquer interesse em levar adiante a guerra, que agora é da alçada dos Estados.
Há algumas semanas, a Europa estava muito à frente dos EUA em termos de mortalidade. Agora houve uma inversão. Os EUA continuam a perder 1.000 pessoas por dia – e em alguns Estados que começaram a relaxar o distanciamento social as taxas de infecção e internação estão subindo.
Nesta semana, cientistas de Berkeley estimaram que os EUA evitaram 60 milhões de infecções ao tomar medidas de quarentena. São 250 mil mortes que não aconteceram. O período analisado vai até 6 de abril, o que implica que mais vidas foram salvas desde então.
Essa disciplina agora começa a desaparecer. Trump retomará sua campanha pela reeleição na semana que vem, com um comício em Oklahoma – o primeiro desde início de março. Isso dará sinal verde para que os americanos voltem a se aglomerar sem censura.
Las Vegas transmite imagens ainda mais fortes, com suas máquinas caça-níqueis em ação e muitos apostadores sem máscaras. Esqueça a guerra. Ir atrás do prêmio é uma metáfora mais adequada para o verão pandêmico dos EUA que vem aí.
Como os cientistas continuam a nos lembrar, o vírus não respeita limites. Infelizmente, isso se aplica tanto aos protestos do Black Lives Matter como aos paramilitares que lotam as capitais de seus Estados. Isso enfraqueceu a capacidade dos democratas criticar Trump por encher os estádios, como é provável que façam na semana que vem.
A covid-19 não faz distinções entre pessoas decentes e nacionalistas brancos. Em um país polarizado, a ideologia derrota a ciência.
Então, o que é que deve acontecer? A consequência mais provável é uma segunda onda de infecções nos próximos meses. Muitos assumem que o vírus se aquieta quando a temperatura sobe. Não há um consenso científico sobre isso.
Uma das taxas de infecção que mais cresce nos EUA é a do Arizona, onde as temperaturas não caíram abaixo dos 32º C em duas semanas. A Índia, onde a época das monções se aproxima, tem uma das taxas de infecção que mais crescem no mundo. No domingo, foi registrado o número recorde de 136 mil novos casos em todo o mundo. Uma em cada sete dessas pessoas era americana.
Uma consequência relacionada a isso será o impacto nas eleições de novembro. À medida que a quarentena for relaxada, isso aumenta a atividade econômica de curto prazo. Essa é a única esperança de Trump de se manter no cargo.
Pesquisas mostram o avanço da liderança de Joe Biden em áreas quase proibidas – exceto na economia. No geral, Trump está atrás com uma diferença de mais de 10 pontos. Mas os eleitores americanos ainda são ambivalentes sobre qual é o melhor candidatos para reviver a economia.
As chances de que Trump traga Fauci de volta ao pódio são, portanto, muito baixas. A voz da ciência é a última coisa que o presidente quer ouvir. O que significa que a terceira – e mais duradoura – consequência deve ser o prejuízo para a imagem global dos EUA.