Por Paulo Atzingen, de Trindade (GO) – Reportagem dedicada à amiga Fran Spadari
(Publicada originalmente dia 4 de julho de 2018)
Os carros de boi da romaria de Trindade formam essa ideia composta de força, fé e identidade brasileira muito ligada à essência e à verdade de nosso povo.
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Os carreiros viajaram durante dias e noites com a família, com amigos e colegas do arado e da sela e avançam sobre as estradas de terra, de pedra e asfalto e chegam à Trindade. Vieram de Araçu, Vianópolis, Aparecida, de fazendas incrustadas no serrado brasileiro e não querem saber se há reis, políticos, ou bispos por trás de tudo. Eles buscam essa névoa pouco entendida, mas sentida, da Trindade.
Buscam essa poeira marrom das estradas de terra e que em algum lugar da jornada se confunde com a poeira mística do indescritível.
Porém dessa mesma força pura cresce um mundo à parte, uma engrenagem que deve ser azeitada para atender a economia de mercado, mas eles não ligam para isso. Seguem e chegam.
Sobre esses 200, 300 carros de boi está esse povo genuíno de Goiás, do Tocantins, das Minas Gerais, do Mato Grosso, ligado à terra até a raiz.
Vêm porque experimentaram milagres e chegaram a profundidade de si mesmos e aqui, nessas ruas, saem à tona para dizer ao mundo sua história única e individual.
Silêncio, na fogueira
Trazem na bagagem galinhas, sacos de farinha, azeite, banha, carne conservada em latas e uma religiosidade às vezes infantil, às vezes confusa. Mas forte, determinada e sem amarras e sem segundas e terceiras intenções; buscam porque precisam, caminham porque seus corações gritam por isso, embora tenham dificuldade de expressar em palavras. No acampamento, na estrada, talvez, falem em silêncio para si mesmos, em oração, ao lado da fogueira.
Em fila, as carroças passam com seus eixos e rodas cantantes e lembram uma fileira de carros de guerra prontos para um confronto espiritual. Cabras, carneiros e bodes acompanham o cortejo remetendo, por um segundo, ao sacrifício antigo dos hebreus. Na calçada; o mundo desenvolvido fotografa um aparente mundo colonial. Uma espécie de mar vermelho-marrom se abre para a passagem dos bois zebus e caracus com seus chifres pontiagudos e a pequena cidade de Goiás se unifica diante do antigo e do moderno. Gente bem vestida vem ver e conhecer, mulheres de pintam para ver os peões bonitos passarem, a criança é trazida para ver pela primeira vez um boi ao vivo e à cores.
Carga
Carreiros de Ouro Verde trazem um carregamento de esperança, coragem e desprendimento porque, simplesmente, se puseram à estrada.
Carreiros de Petrolina trazem uma carga de profundidade e de entendimento de si mesmos pois não ficaram sentados no sofá da sala da fazenda trocando mensagens frívolas por telefones celulares.
Carreiros de Aparecida vêm agradecer a colheita do milho e a cura da criança desenganada.
É uma chegada triunfal à cidade e os carreiros são a própria mensagem. Trazem a própria mensagem em sua fronte tostada de sol, uma dor superada, por uma paz atingida.
É gente do campo, do pasto e do sertão que falam pouco; mas agem muito; estão mais ligados aos ciclos da terra e não aos dos homens com seus noticiários; e seu calendário obedece ao tempo da colheita, ao período das estações.
Trazem a mensagem da terra sertaneja que – colocada à margem – foi substituída por edifícios, shoppings, automóveis e um mundo antisséptico à prova de balas, à prova de surpresas e intempéries.
Trazem na carroça a vontade da comunhão, da fraternidade perdida em uma curva de rio, na encruzilhada de caminhos. E buscam uma resposta para suas perguntas.
Nessa intrincada teia de desejos, pedidos, súplicas e agradecimentos o coração desses carreiros bombeia um sangue novo, arejado por glóbulos de amor e de fé.
Brasil concreto e real
Esses carreiros vêm das fazendas que se espalham em um raio de 800 quilômetros. Vêm montados em um Brasil concreto e real, de um período onde o sim era sim e o não era não, tempo em que a palavra era mais forte que certidão lavrada em cartório.
Em tempos de economia de mercado outdoors estampam a festa da Trindade. Pessoas mais jovens são atraídas pela propaganda e caminham 15 quilômetros em trajes de academia de ginástica; talvez busquem a migalha de alguma misericórdia. Outras se irmanam ao significado e rezam enquanto caminham; outras vêm só olhar.
Que a força e a fé desses carreiros continuem maiores que a política e à economia de mercado. E que eles possam trazer pelo menos uma vez por ano, a essência do que já fomos, essa poeira mística do indescritível.
*Paulo Atzingen é jornalista e fundador do DIÁRIO DO TURISMO
*O jornalista viajou a Trindade convidado pela Afipe – Associação Filhos do Pai Eterno