O turismo é uma atividade ocidental, capitalista e moderna e essas características contém elementos machistas e racistas. Esse é um dos trechos do livro “Turismo Legitimado: Espetáculos e Invisibilidades” de Helio Hintze. Segundo o autor, em sua tese de doutorado, machismo e racismo, não são acidentes do turismo, mas integram, são constitutivos do turismo moderno e ocidental. Hintze, em sua análise, parte do pressuposto de que sendo o turismo uma atividade que legitima a existência de um “modelo de homem branco, heterossexual, cristão, que fala uma língua padrão, todo o resto é considerado “os outros”, afirma Helio Hintze, nesta segunda entrevista exclusiva ao DIÁRIO (Leia a primeira).
REDAÇÃO DO DIÁRIO
Indagado se essa sua obra não seria uma crítica tardia e ao mesmo tempo repaginada ao capital e ao capitalismo, Hintze responde: O capital está cada vez mais introjetado na experiência de vida das pessoas e isso está posto de forma gritante no turismo. Os discursos da OMT e do WTTC são obscenos a qualquer um que tenha um mínimo de discernimento crítico. E o que a nossa academia faz (não são todos, são muitos) – repete feito papagaio, a “OMT disse”, “segundo o WTTC” – e dá-lhe reprodução acrítica de conteúdo produzido, não para comunicar, mas para persuadir…essa é a minha tese”, afirma Hintze ao DT.
Confira abaixo a segunda e última parte da entrevista com o educador, filósofo, pesquisador transdisciplinar Helio Hintze em sua tese de doutorado que originou o presente livro integrante das Edições SESC-SP.
DIÁRIO – Aquela venda da imagem da mulher branca e magra associada à tradicional hospitalidade brasileira (pg. 282) não ficou no passado? O senhor iniciou sua tese de doutorado em 2008; de lá para cá isso não tem mudado? Hoje o negro e a negra não integram as peças publicitárias do turismo com mais frequência?
Veja também as mais lidas do DT
Não. Não ficou e no governo atual foi relançada como atrativo turístico-sexual-declarado. O doutorado teve início em 2008…. a preocupação com a temática da tese teve início em 2002, no mínimo…. de la pra cá isso tem sido mais em mais evidenciado… claro que o mercado é mutante e absorve os impactos da crítica (aliás, essa é sua característica mais interessante) e depois devolve novas mercadorias… O negro e negra foram apropriados como mercadorias ou como nichos de mercado… a pesquisa com a revista foi feita na época do doutorado… tive que refazê-la para atualizar o livro e – para mim – a coisa se manteve… pega uma revista e vai folheando e me diz quantos turistas negros felizes você vai encontrar… o que aconteceu de lá pra cá e que eu percebi é que as pessoas nas publicidades estão sempre de costas… (mas, pelas costas a gente ainda vê quão o turista é branco)…
DIÁRIO – “No Brasil há muita desigualdade e a ideologia racista que configura o discurso turístico fica exposta ao analisarmos sua comunicação”, o senhor afirma em seu livro. Sabemos que a mídia do turismo usa clichês, estereótipos, lugares comuns e empobrece o turismo e não discute os seus problemas. Mas ela também é racista?
Boa pergunta…. será a resposta mais curta: o Brasil é civilizatoriamente constituído pelo racismo e pelo machismo. Ambos atravessam todo nosso tecido social, qualquer manifestação da cultura brasileira é permeada por ambos. Até as ações contra, pois elas tem que se posicionar contra, então tem que levar o racismo e o machismo em consideração. Invisibilizar o negro no papel de turista é produzir uma eugenia simbólica, uma limpeza simbólica que é acompanhada pela limpeza física… a mídia é racista pois (re)cria e atualiza um imaginário racista do branco sendo senhor e do negro sendo inferior porque o é, por sua natureza. Aí está a violência simbólica da mídia do turismo nacional. Quando traz o negro, a sexualidade divergente do modelo cis-hetero-normativo traz como nicho, ou seja, como consumidor – ou, na maior parte da vezes como empregado, atrativo ou carente… que precisa da ajuda de quem? Do turista-branco-ocidental-cristão-heterossexual que levará – de acordo com a totalidade dos discursos da OMT e o WTTC – o desenvolvimento, o emprego e a dignidade para esses que ‘não conseguiram por si mesmos’. É um movimento neocolonialista.
DIÁRIO – O senhor fala que a espetacularização da cultura para o consumo turístico ameniza as diferenças sociais no país (pg. 286). Isso não é mais bom do que ruim?
Ameniza no discurso, não na prática. Na prática essa ‘amenização’ significa a limagem das diferenças sociais… de novo… coloca o turista como vetor de desenvolvimento e o ‘outro’ como aquele que deve dar graças ao deus-branco-europeu de poder ser – de novo – colonizado. As DIFERENÇAS são extremamente necessárias – são saudáveis, o que lutamos contra são as desigualdades… e se o consumo do turismo ‘ameniza’ a desigualdade porque aquele que pode explorar (o turista) – leva o desenvolvimento – ao que se deixar ser explorado (porque não tem outra alternativa) … isso é uma mitologia.
DIÁRIO – A metáfora que o senhor faz com o papel do capital no mundo do turismo ´e que ele age como um vírus – ou um agente infeccioso – “o capital é um parasita obrigatório, pois – por meio do turismo – pode-se reproduzir no interior de qualquer idéia”. Essa afirmação e todo o seu livro não parece uma crítica tardia e ao mesmo tempo repaginada ao capital e ao capitalismo?
Ahah, gostei. Então, tenta achar essa crítica ao turismo na literatura nacional. A questão do turismo não havia sido analisada assim até agora… por quê? Porque ninguém quer mexer naquilo que todos nós queremos fazer né… tá todo mundo querendo voltar a viajar… a consumir tudo o que puder… eu entendo a crítica (iniciada em 2008 – e concretizada como livro em 2020) como atualíssima e necessária… o capital se repagina, o turismo se repaginou (turismo de massa à turismo nichado, à discurso da experiência ultraindividual) cadê a crítica? O capital está cada vez mais introjetado na experiência de vida das pessoas e isso está posto de forma gritante no turismo. Os discursos da OMT e do WTTC são obscenos a qualquer um que tenha um mínimo de discernimento crítico. E o que a nossa academia faz (não são todos, são muitos) – repete feito papagaio, a “OMT disse”, “segundo o WTTC” – e dá-lhe reprodução acrítica de conteúdo produzido, não para comunicar, mas para persuadir… essa é a minha tese.
DIÁRIO – Quais seriam as novas formas de deslocamentos sobre a Terra que nos permitam ser menos vorazes (academia, mídia e instituições de turismo) – como vírus destruidores de povos e paisagens?
O comportamento da nossa espécie não é de mamíferos… é o comportamento de um vírus (dito pelo Mr. Smith em Matrix 1) – assim, hoje com quase 8 bilhões de espécimes podendo (de alguma forma) prolongar sua vida e consumir mais e mais, nosso comportamento, no meu ponto de vista, será sempre devastador. Não é o turismo, é a pizza, é o carro, é a geladeira, a kitnet de 8m2 – multiplique isso pela humanidade e não dá… o objetivo do meu livro foi tentar mostrar essas impossibilidades. Agora, dentro do que podemos fazer, podemos pensar numa turismo que produz encontros não hierarquizados entre turistas, pessoas das comunidades locais, profissionais e como desdobramento disso, com culturas e ambientes? Esse é nosso desafio…