Leia o artigo de Lorena Lage, CEO e cofundadora da L&O Advogados (OAB/MG 163.448), sobre a crise na Hurb
Hurb: crise regada a deboche, cancelamentos e renúncia*
Para entender a crise que assola a Hurb, é preciso conhecer um pouco da história da empresa, bem como entender o setor de atuação. Isso porque, quando um importante player que une turismo à tecnologia entra em crise, uma reação em cadeia pode acontecer. Pois bem, a atual Hurb nasceu como Hotel Urbano em 2011, momento de forte crescimento do mercado digital, tendo em vista que esse se popularizou nos anos 2000 no Brasil, com a democratização do uso da internet.
Vivíamos um cenário de expansão do ambiente digital, com empresas de base tecnológica para facilitar o acesso à aquisição de bens e contratação de produtos, com a quebra de barreiras geográficas e com a possibilidade de realizar compras 24 horas por dia.
Foi nesse cenário que o Hotel Urbano nasceu realmente disruptivo, trazendo a possibilidade de compras de pacotes de viagens ou apenas reservas em hotéis, em um formato que foi denominado de modelo de “compras coletivas”: grupos de pessoas faziam a compra de pacotes de turismo de forma coletiva e mais barata, já que a empresa atingia um número maior de pessoas e conseguia um valor mais baixo junto aos fornecedores.
O surgimento desse tipo de consumo desencadeou a necessidade de uma legislação específica. Já existia o Código de Defesa do Consumidor – mas focado no mundo físico – e que não abarcava as novas realidades, como essa das novas empresas de base tecnológica. Então, em 2013, esse cenário desencadeia a necessidade da Lei de E-commerce (Lei 7.962 de 2013), trazendo um detalhamento maior quanto às novas realidades de compras no ambiente digital e regulamentando o comércio eletrônico no Brasil.
Destaco aqui o segundo e o terceiro artigo dessa lei, que ditam um novo cenário para as empresas que atuam no ambiente digital. Elas passam a ter a obrigação de detalhar melhor quem são (informações da companhia, dos sócios e o endereço físico, por exemplo), ainda que atuassem apenas no digital. A lei traz à tona ainda um outro ponto muito importante e que gera um debate relevante até hoje: a necessidade do e-commerce oferecer todo o detalhamento das condições para que o consumidor possa saber como usufruir da oferta veiculada no ambiente digital, de forma clara e ostensiva.
Inclusive, a Lei do E-commerce regulamenta a forma de atuação do modelo de compras coletivas, que era o cargo chefe do Hotel Urbano, indicando a obrigatoriedade de veicular na oferta todas as informações necessárias para que o consumidor possa tomar sua decisão, como, por exemplo, com a indicação da quantidade mínima de pessoas que devem adquirir aquela oferta para que seja válida, contendo o prazo que poderá ser utilizada pelos clientes e, de uma forma geral, todas as informações necessárias para o seu uso pelo consumidor.
Em um momento mais recente, quando o Hotel Urbano se tornou Hurb, o cenário já era outro, as empresas conquistaram o ambiente digital e há um mercado muito acelerado e com alta concorrência. Para além disso, durante o isolamento social da COVID-19, a marca explorou as vendas a longo prazo a preços muito tentadores.
Hoje, no momento que essa crise toma forma, o setor de turismo está muito aquecido e nos deparamos com significativa alta nos valores dos fornecedores para esse mercado, que ficou tanto tempo em um cenário desfavorável. Então, agora, a Hurb enfrenta dificuldades para entregar as promessas realizadas e ofertadas, tal como prometido e tal como adquirido pelos consumidores.
Diante da necessidade dessa consciência e senso de responsabilidade, o mercado se depara com o caso do João Ricardo, ex-CEO da Hurb, que infelizmente não soube gerir a crise. Essa necessidade de cumprimento das ofertas, conforme dispõe a Lei do E-commerce, e também o Código de Defesa do Consumidor, é uma realidade ao qual a Hurb não pode se esquivar, já que a proposta veiculada e adquirida pelo cliente gera o contrato com obrigações para ambas as partes, tanto para o cliente quanto para Hurb.
Neste caso, vemos, portanto, uma gestão mal feita, com gestores que não souberam lidar com a questão dos desafios de mercado e das vendas já realizadas, em um momento diverso do vivido atualmente, deixando de guiar os clientes e colaboradores em meio ao turbilhão, para que um recálculo de rota pudesse ocorrer. Muito pelo contrário, o negócio foi guiado para uma crise ainda maior, com o deboche da situação.
A divulgação de vídeos nas redes sociais que mostram João Ricardo, então CEO da empresa, pisando em uma faixa, com uma suposta reclamação de um cliente, e outros vídeos com xingamentos, expondo dados pessoais do consumidor em um grupo de WhatsApp da empresa são alguns dos inúmeros fatos que se sucederam nessa má gestão.
Tudo isso desencadeou a saída do CEO da Hurb, que é deixada em um cenário desfavorável e de crise junto aos clientes: Conta com um índice de soluções na plataforma do Consumidor.gov, que media soluções de problemas entre consumidores e empresas, de cerca 50%, nos últimos 6 mese, sendo que os números atuais da plataforma, que se referem ao mês de abril, mostram apenas 40% de soluções, ou seja, esse índice já está caindo, o que comprova um cenário de piora.
Isso se deve aos pacotes cancelados, atrasos no pagamento dos hotéis e que, por consequência, os hotéis não estão cumprindo a hospedagem e dos pontos já narrados. Os clientes da Hurb têm ficado prejudicados ao tentar realizar as viagens: quando não conseguem confirmar as passagens, não conseguem se hospedar no local de destino, ou mesmo precisam lidar com a total falta de assistência da empresa.
A má gestão é reflexo da dificuldade de João Ricardo para gerir a crise, com inteligência emocional, guiando o negócio para a transparência junto ao mercado e clientes em busca da solução. Como o próprio João Ricardo disse em sua carta de saída da empresa, é preciso aprender a distinção entre “o João ‘Pessoa Física’ do João ‘Pessoa Jurídica’”, para a condução adequada dos negócios.
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Fica agora a expectativa do novo CEO, até então presidente do conselho da Hurb, que assume a gestão, mesmo diante de tantos desafios, e estará à frente de uma empresa com bastante tempo de mercado e condições para se reerguer, mas que precisa rapidamente lidar com essa crise.
É válido mencionar ainda que desafios no mercado de tecnologia sempre vão acontecer. Para uma empresa que está desde 2011 em um mercado extremamente competitivo, com necessidade de se reinventar a todo momento, essa possibilidade de recuperação é possível e viável; é hora da gestão de crise.
Por fim, destaco que passar por desafios contínuos é a realidade de uma empresa, especialmente para aquelas que seguem à frente do tempo, inovando. Entretanto, a forma de lidar com estes desafios é essencial e exige muita sabedoria, especialmente porque é preciso ser transparente na comunicação com os clientes, indicando o recálculo de rotas e trazendo a segurança necessária para o mercado.
É preciso realizar um plano de ação efetivo sobre como as situações serão resolvidas, mostrando as opções,dentro do que o Código de Defesa do Consumidor define, como o cancelamento do contrato, devolução do dinheiro, o cumprimento da oferta em um prazo distinto ou uma condição distinta – mas acordada com o consumidor -, ou até mesmo o cumprimento da oferta de uma maneira equivalente à forma inicialmente contratada pelo cliente.
Assim, um plano de ação ágil e sólido precisa existir, especialmente dentro de uma empresa de base tecnológica com influência no mercado. A comunicação é essencial e a informação precisa chegar aos clientes. A Hurb precisa lidar com essa realidade, agora liderada pelo novo CEO, Otávio Brissant, que está na empresa há 7 anos e que precisará lidar com a crise com muita sabedoria.
O plano de ação deve estar alinhado para sanar as inseguranças do mercado, já relatadas por clientes lesados, tal como exposto pelo Procon-SP e outros órgãos de defesa do consumidor, que já se manifestaram sobre o assunto e que estão procedendo à devida tramitação das reclamações registradas contra a Hurb, para compreender adequadamente a situação de cada uma e encaminhar para a solução mais adequada, considerando que há agora a necessidade da empresa apresentar suas justificativas para os fatos relatados e a proposição de ação. É inevitável, a Hurb precisa atender os clientes ou estará fadada ao fim de sua reputação e do negócio.
*Artigo por Lorena Lage, CEO e cofundadora da L&O Advogados (OAB/MG 163.448)