La Casa de Papel e o surrealismo de Salvador Dali

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por Paulo Atzingen*


Na manhã desta segunda-feira em Madri parecia que a seleção espanhola – la fúria roja – ia jogar. E não era no Santiago Barnabéu, mas nas praças que circundam a Casa da Moeda da Espanha. Todos, eu digo, todo mundo ia pr’aquela direção. Buzinaço, carreatas, e muita gente com bandeiras e enfiadas em camisas vermelhas cor de sangue caminhava em direção ao banco gritando:

– libertad! libertad! libertad!

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Como brazuca e ainda recobrando as ideias de um domingo regado a vinho Tempranillo,  demorei para entender que não era uma partida da seleção, mas um manifesto a favor dos integrantes de La Casa de Papel.

Olhei pela janela do hotel e vi a polícia madrilenha alinhada de um lado da Gran Via, ainda naquela posição continente de mantenedora da ordem e da legalidade, mas pronta – e bem armada – para conter agressões ao patrimônio e vandalismo barato.

Gritos e palavras de ordem tomavam o ar e me arrepiei quando entendi que eram os nomes dos integrantes detidos do bando do professor:

Tóquio! Nairobi! Rio! Moscou! Libertad! Libertad!

Parecia um ato ecumênico para a paz mundial e os nomes das cidades ecoavam como uma onda de justiça, uma ola como falam aqui. Esses nomes de capitais, cada uma em um canto da Terra, eram codinomes escolhidos pelo grupo para que não houvesse intimidade entre eles, mas agora algo extraordinário acontecia. Os gritos de Tóquio! Nairobi! Rio! Moscou! ligavam-se entre si – como cidades irmãs globais e de forma surreal ligavam as pessoas em um ato público de pedido de perdão e de compaixão planetária. Gritos de centenas, milhares de espanhóis eu ouvia e, como todo grande manifesto, exalava uma força estranha, uma eletricidade humana que tomava conta da capital espanhola. Minha vontade era me atirar a essa onda enorme, mergulhar em meio aos madrilenhos e pedir a absolvição da metade do grupo do professor.

Desci à rua e uma brisa de gás lacrimogêneo me entrou pela boca secando-a como areia do Saara. Comprei o El Pais e voltei para o hotel.

Tribunal de Haia

A capa do jornal trazia a foto de um juiz catalão de nome Felipe Gonzalez, de Tarragona. Ele contestava a jurisdição do tribunal onde seriam julgados a metade do bando do professor e entrou com uma ação de incompetência territorial requerendo todo o processo para Barcelona. O El Pais publicava partes do processo e apresentava na edição desta segunda-feira a chamada de capa:  “Juiz Catalão contesta julgamento e recorre à Haia!”. Na mesma edição estava parte da defesa de Gonzalez. Ele usa o ardil jurídico de que Tóquio, Nairobi, Rio e Moscou são todos cidadãos nascidos na Catalunha, não são espanhóis, portanto devem ser julgados em Barcelona e não em Madri. “Até o plebiscito da independência da Catalunha ser julgado pela Suprema Corte Internacional, em Haia”, eram os argumentos do brilhante juiz catalão.

O julgamento, portanto, que deveria ser na próxima quinta-feira aqui em Madri, foi suspenso.

Criava-se à minha frente uma batalha jurídica muito semelhante à briga da Espanha e Holanda pelos direitos do Mar.

O caso da transferência de recebíveis do grupo do professor que estava sob a alçada do Tribunal Supremo Espanhol passaria agora para o Tribunal Supremo da Catalunha e o povo de Madri, eu não sabia ao certo, se comemorava ou lamentava. Parece que brigavam pelo direito de julgarem em suas instâncias os saqueadores da Casa da Moeda.

Tóquio! Nairobi! Rio! Moscou! Libertad! Libertad!

O Ministério Público Espanhol pedia penas de até 10 anos de prisão para os quatro acusando-os pelos crimes de rebelião, formação de quadrilha, desvio de fundos, desobediência civil e ameaça à estabilidade política da Espanha.

Dívida e perdão

No entanto, o grupo do professor tinha conquistado a admiração e respeito do madrilenho médio – empresários, funcionários públicos, trabalhadores informais, gente normal e sem privilégios, que lutava para pagar suas contas, ter sua casa própria, comida sobre a mesa e que, de repente, se via despertada de um grande sonho surrealista: os bancos e o sistema financeiro espanhóis que deveriam ser os pais provedores de uma nação tinham perdido sua máscara e se revelavam os vampiros da pátria, os sangue-sugas do país. As faixas, os gritos lá fora traduziam isso: era inadmissível para uma família ter que sacrificar 30 anos de sua vida para ter sua casa própria, sendo que 15 anos era somente para pagar o sistema financeiro. Era intolerável os juros que os estudantes pagavam pelo crédito educativo. Era obsceno os encargos que os bancos impunham nos planos de previdência dos idosos. Deviam essas descobertas ao grupo de La Casa de Papel.

Por isso lá fora o povo madrilenho gritava:

Tóquio! Nairobi! Rio! Moscou! Libertad! Libertad! –  Esses gritos ligavam-se entre si – como cidades irmãs globais e como uma obra surrealista de Salvador Dali, ligavam as pessoas em um ato público de pedido de perdão e de compaixão planetária.


*Paulo Atzingen é escritor e jornalista

**Esta história é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência – Leia os outros capítulos desta novela nas edições futuras do DIÁRIO DO TURISMO.

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