Mickey Mouse em domínio público e agora? – por Carolina de Castro Wanderley*

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O termo “domínio público” é amplamente utilizado, mas nem sempre o seu significado é de domínio público. Trocadilhos à parte, está na hora de entendermos este imbróglio e o que aconteceu com Mickey na primeira semana deste ano.

Obras autorais como músicas, fonogramas, quadros, textos literários, personagens, tudo é protegido legalmente sob os direitos autorais. Significa dizer que o criador pode comercializar livremente as suas criações, e delas receber a remuneração devida. É como se o Estado trocasse com o autor: você torna pública a sua obra e eu lhe garanto que não deixarei ninguém a copiar. Assim se incentiva a cultura, fomenta-se a criação artística e as indústrias culturais.

Mas isto por um tempo, pois depois de transcorrido o prazo que a lei nacional prevê, a obra cai em domínio público e pode ser usada não só pelo criador, mas por qualquer pessoa sem que tenha que pagar qualquer tipo de licenciamento ao artista original. O domínio público é uma devolução da criação ao mundo. A obra deixa de ser exclusividade de seu criador e passa a fazer parte do panteão de criações artísticas de toda a humanidade, sobre o qual alicerçamos nossa cultura e o nosso sentido de humanidade.

O prazo para que uma obra caia em domínio público é bastante variável de país para país, mas normalmente é contado em anos a partir da publicação da obra ou do falecimento de seu autor. Fato é que, após o período previsto em lei, o uso da obra fica liberado.

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Em recentíssima notícia, soubemos que a primeira versão do personagem Mickey caiu em domínio público no dia primeiro de janeiro de 2024. Trata-se do personagem em preto e branco, exibido no filme “Steamboat Willie”, uma simpática história em que Mickey e Minnie embarcam em uma viagem num barco a vapor, regada a muita música e algumas condutas de maus tratos a animais a bordo.

Durante muitos anos acompanhamos as exaustivas tentativas dos Estúdios Disney para ampliar o prazo de domínio público ao máximo. O filme “Steamboat Willie” estreou em novembro de 1928, na chamada Era de Ouro do cinema de animação norte-americano. Mas ainda não se tinha a exata dimensão do potencial da indústria cinematográfica recém-nascida, de modo que parecia perfeitamente plausível que pela lei americana, após 56 anos, ou seja, em 1984, aconteceria o seu domínio público. Os esforços de investimento na produção do filme seriam razoavelmente compensados no tempo de sua exploração comercial.

Ocorre que, como se sabe, o negócio de animação se revelou milionário. Assim, em 1976, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei que ampliou para 75 anos este prazo, ou seja, a Disney ganhou mais dezenove anos de uso exclusivo desta versão do personagem e de todas as criações subsequentes. Aqui já estamos num momento em que o negócio de animação para cinema se mostra altamente rentável, logo, por quanto mais tempo se possa explorar com exclusividade uma criação, tanto melhor.

Quando chegou o ano de 2003, antes do domínio público de “Steamboat Willie” acontecer, o Congresso fez nova extensão do prazo de proteção autoral, aumentando-o para 95 anos. À época, se considerou escandalosa a medida, que claramente atendia aos anseios dos Estúdios Disney.

Veja-se que desde o início dos esforços de dilação do prazo anterior ao domínio público, foram 39 anos que se ganhou. E este tempo não aproveitou somente ao Mickey, mas a um universo enorme de outros filmes e personagens lançados nos EUA e que beberam desta “fonte da juventude”: a apresentação visual de Branca de Neve e de seus amigos Anões apresentada por Disney é a mais amplamente conhecida; o Pato Donald que apareceu pela primeira vez nas telas nas chamadas “Silly Symphonies”, de 1929 a 1939; o Pateta, dentre outros. E fora do complexo Disney, numerosos outros personagens ganharam vida no período e aproveitaram a ampliação do prazo de domínio público: Pernalonga, Patolino, Papa Léguas, Pica Pau, Mr. Magoo e a Pantera Cor de Rosa. Logo, um universo de interesses comerciais!

E agora, em 2023, não houve mais o que ser feito e o estúdio Disney aceitou o inevitável: Mickey em sua primeira versão caiu em domínio público. Mas o que isso quer dizer, no final das contas?

Quer dizer que o personagem pode ser utilizado em outras obras sem que se busque autorização de Disney, como inclusive já anda sendo: no dia 1º de janeiro último, foram lançados um filme de terror com um assassino vestido de Mickey (Mickey’s Mouse Trap) e também um jogo de terror inspirado no personagem (Infestation 88), criado pelo estúdio de jogos Nightmare Forge Games.

Por outro lado, os estúdios Disney continuam detendo com exclusividade as marcas comerciais e todas as obras autorais cujo lançamento aconteceu por prazo menor que os 95 anos da lei americana. O negócio não terminou, como é sabido, nem deixou de ser rentável.

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Referências:

O FILME de terror com Mickey Mouse anunciado após Disney perder copyright. BBC News, 03.01.2024. Acessada em 03.01.2024 em https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2024/01/03/o-filme-de-terror-com-mickey-mouse-anunciado-apos-disney-perder-copyright.ghtml.

EUA. Title 14, United States Codes. Copyright Law of the United States. Acessada em 03.01.2024 em https://www.copyright.gov/title17/.


*Carolina de Castro Wanderley
é advogada, editora literária, doutoranda em Letras Estrangeiras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisadora na área de Direito e Literatura e membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

Texto originalmente publicado no site Consultor Jurídico e autorizado sua publicação

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