Na rota de al-Mutamid – por Osvaldo Alvarenga*

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Faz tempo, foi antes da pandemia, percorremos um bom trecho da Rota de al-Mutamid: o percurso que marca o território do que foi o reino mouro de Sevilha no final do séc. XI. A rota resgata o passado comum entre as três regiões ao sudoeste da Península Ibérica. Começa em Lisboa, passa por Évora, Beja, Mértola e Sevilha. Depois retorna a Portugal por Huelva, Tavira, Faro, Lagos, Sagres e Aljezur. Em Sevilha cruzam outras sete ou oito rotas do El Legado Andalusí. À semelhança dessa luso-espanhola, são rotas que contam outras histórias da antiga al-Andalus, nome dado pelos mouros à Península Ibérica muçulmana.

Al-Andalus teve o seu apogeu durante o califado de Córdoba, entre meados do séc. VII até o início do séc. XI. Dominava a maior parte da Península Ibérica e também do Tânger, Ceuta e Melilla, fechando o estreito de Gibraltar no norte da África. Não existia Espanha, Portugal nem Marrocos. Os domínios cristão estavam espremidos no norte da península, cindidos em reinos como os de Leão, Castela, Navarra e Barcelona. Nessa época, nesta ponta da Europa, a relação entre as monarquias cristãs e muçulmanas era, com mais frequência, diplomática e amistosa. Até o final do séc. X, o califado foi muito poderoso, respeitado e temido. Mas em 1009, por insatisfação com os impostos, por questões políticas, um golpe de estado deu início a uma guerra civil, e Córdoba ruiu. Esfacelada em várias taifas (reinos independentes), al-Andalus foi tomada por guerras e disputas entre muçulmanos e, ao norte, disputas entre cristãos; e, por toda a península, mulçumanos associados aos cristãos contra mulçumanos ou cristãos associados aos mulçumanos contra cristãos. Pouca gente sabe que, por séculos, houve intenso comércio e sortida disputa entre esses estados e também, longe de ser incomum, cooperação e financiamento de guerras. Não à toa, tantos castelos e fortalezas medievais por toda a península.

A Rota de al-Mutamid recebeu este nome em homenagem ao terceiro e último rei da taifa de Sevilha. Nascido em Beja (no Alentejo), por volta do ano de 1040. Filho do rei de Sevilha, foi enviado pelo pai para governar as taifas de Silves e de Santa Maria do Algarve. Jovem, culto, considerado grande poeta, o príncipe mouro conheceu no Algarve outro jovem, muito ambicioso, também poeta, Ibn Ammar, que foi o seu mais próximo e íntimo amigo. Promovido a vizir, Ammar acompanhou o seu rei por toda a vida, até traí-lo; e por isso foi executado pelo próprio. Também no Algarve, al-Mutamid, conheceu e casou-se com a escrava Rumayhiyya, dando a ela o título de a Grande Dama Livre (al-Sayyida al-kubra). Muitas foram as histórias transformadas em literatura protagonizadas pelos três; parte de uma longa e lírica trama.

Nossa viagem começou em Lisboa. Então Évora e, depois, passando por Reguengos de Monsaraz, seguimos em direção a Sevilha, a capital da Andaluzia; de lá, fomos até Ronda. Na volta, passamos por Faro, Portimão, Lagos, Aljezur e, subindo o Alentejo pela Costa Vicentina, regressamos a Lisboa. Uma viagem de 1.300 Km, fugindo das autoestradas para ver de perto ou cortar por dentro as muitas aldeias e vilas de casario branco abundantes ao sul da península; herança moura.

Desde a época dos tartessos, há oito mil anos, aliás, muito antes ainda, desde a chegada do homo sapiens à Península Ibérica e o encontro desse com o homem de neandertal, que já vivia aqui há 40 mil anos, que as culturas da região vêm sendo moldadas, transformadas ao longo dos séculos pela influência e superposição de camadas e mais camadas de civilizações, etnias e até espécies em intercâmbios e mestiçagens. Nem todos os povos que marcaram as culturas ao sul foram influentes ao norte da península e vice-versa. Por isso mesmo, provavelmente, há mais características étnicas e culturais comuns entre alentejanos, andaluzes e algarvios que entre portugueses do sul e do norte ou entre andaluzes e bascos.

Também há mais coincidências entre o clima, a vegetação e a economia do sudoeste peninsular, nos dois lados da fronteira, que entre o norte e o sul dentro das fronteiras desses dois países. Eram essas características e história comuns que queríamos mostrar aos sobrinhos que vieram nos visitar. Já eles, creio eu, estavam mais entusiasmados em ver, nos jardins de Alcázar, as locações para a quinta temporada do “Game of Thrones”. E lá fomos nós.

De Lisboa até Sevilha, prevalece o clima árido e a paisagem parece mudar pouco. Na verdade muda bastante, mas muito lentamente e os viajantes acostumados ao montado alentejano, com sua floresta de azinheiras, sobreiros e carvalhos, ao gado diverso camuflado entre as árvores, ao rebanho de porcos pretos e, de vez em quando, olivais e vinhas, mal percebem quando, nas imediações da Sierra de Aracena, o ar torna-se fresco, a planície é deixada para trás e os olhos passam a ver picos e vales, mas ainda assim azinheiras, sobreiros e gado. Até Sevilha, a estrada ficará novamente plana e, nas laterais, são as plantações de girassóis e trigo que irão assinalar a mudança na paisagem.

Sem pensar em rota alguma, de Sevilha seguimos para Ronda, a única cidade inédita para a Iêda e para mim nesse trecho. Não decepcionou. A cidade fica no topo de um altiplano, mesmo à beira do precipício onde, embaixo, corre o Tejo. Foi erguida pelos mouros. Do alto podiam ver a chegada do inimigo com dias de antecedência. Hoje é um polo turístico com várias atrações. Dormimos lá uma única noite e foi perfeito. Caminhamos pelos pontos de interesse e, a grande surpresa gastronômica da viagem: conhecer o Bar El Lechuguita, as melhores tapas que alguma vez comi.

Mais ao leste, a uma hora de carro depois de Roda, em El Chorro, ficam os Caminitos del Rey. Tentamos agendar o passeio, mas só havia reservas para muitas semanas depois. A informação vale para aqueles que planejam as viagens com antecedência. Para gente como eu, quem sabe, no inverno do próximo ano talvez eu encontre, sem prévio agendamento, algum horário…

De volta a Portugal, de volta também à Rota de al-Mutamid, a estrada que cortava o campo cede lugar à via urbana: aglomerados rurais tornados cidades veraneio, umas ligadas às outras. Às vezes uma pequena vinha, outras vezes algum laranjal e, sempre presentes, as praias do Algarve. As praias não estão ali à beira da estrada, um desvio em direção ao mar é necessário e, aí sim, o deslumbre das falésias com areia embaixo. É preciso estacionar o carro e descer a pé até as praias. Vale todo o esforço.

Seguimos pelo litoral desde Tavira até à praia de Odeceixe, em Aljezur, com toda a certeza uma das mais belas de Portugal. A cor do mar, o céu sempre azul, no verão, os longos dias quentes e secos, convidam ao banho, enquanto a temperatura da água contraria o desejo e afugenta. Dizem que o mar no Algarve é quente. Pode ser mais quente ou, melhor dizendo, menos frio que no resto do país, mas é gelado na mesma. Só crianças, turistas do norte e adolescentes plenos de hormônios são capazes de entrar, ou o Presidente numa de suas missões. Eu, quando muito, molho os pés.

Não descreverei o que fizemos nas cidades por onde passamos. Há muito o que ver em todas elas. Nos guias de turismo – e são tantos – há dicas o suficiente para quem quer organizar a viagem. Deixo a Rota de al-Mutamid como sugestão e um aviso: o melhor desse roteiro não é chegar em parte alguma, mas sim andar por aí, quase que a esmo, só para ver alvas casas, algum castelo, campos e praias. Para conhecer museus e tantos sítios históricos e, por que não, emendar ao roteiro alguma visita às vinícolas e, para todo o percurso, experimentar a excelente culinária local; essa sim muito diferente de um lugar para o outro. Pensando bem, o que vale mesmo nessa viagem são as histórias construídas sobre essas terras e a imaginação, deixada solta, enquanto as conhece.

***

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