O caos olfativo que vivemos na pós-modernidade

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Por Paulo Atzingen*

As fragrâncias constroem grande parte de nossas histórias e, embora não termos absoluta certeza disso, flashs de nossa vida se apresentam quando um cheiro, um aroma nos arremessa a um lugar, um passado perdido no trânsito nervoso do cérebro ou entre as artérias sensíveis do coração. Pode ser um cheiro de alecrim que remeta ao jardim daquela velha infância, um gosto de mar que traga gotas de sal que se dissolvem nas narinas e que umedecem a alma pode ser também e infelizmente um cheiro de pólvora que faz um link à alguma fatalidade já enterrada.

 

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Na caminhada de duas horas que fiz hoje na cidade absorvi tanto monóxido de carbono que repensei esse negócio de trekking em meio aos carros, aos sábados. Passei por canteiros de obras onde o império sensitivo do cimento e concreto invadiram as narinas. Atravessei avenidas e semáforos enquanto brotava do asfalto esse odor fóssil de nos locomover da casa para o trabalho e até à padaria à custa dos derivados de petróleo. “É por isso que existem os parques, Manel, para caminhar…”, pensei comigo.

Essa combinação de concreto e gasolina que nos é enfiada pelas narinas, bocas, olhos, poros e ouvidos todo dia pode, eu sei, ter consequências nefastas lá na frente. Os urbanistas a muito custo criam clareiras de interação social, parques-oásis ecológicos, sinapses de convivência com uns canteiros de verde, discretos, e vemos aqui e ali uma árvore que resiste ao loteamento e à indústria do progresso, essa esmurradora de mil punhos e sempre no faro de novas oportunidades para se dar bem e ficar rica. Tudo isso é uma fábrica de odores, indústria de cheiros corrosivos, carregados de amianto, chumbo e sopros de clorofila sintética.

O certo é que nessas megalópoles experimentamos um caos olfativo e vivemos um desastre ambiental na atmosfera.

É claro que a indústria também cria ambientes agradáveis, harmoniosos inspirados no Feng Shui chinês ou outras correntes ocidentais que objetivam amenizar o overbooking que experimentamos em tudo.

O certo é que nessas megalópoles experimentamos um caos olfativo e vivemos um desastre ambiental na atmosfera.

Já existem leis que regulamentam e normatizam as questões ambientais, relacionadas ao tema como filtros nos escapamentos, normas e ISOs nas fábricas que expelem odores na atmosfera, mas não tenho noticia de uma lei que imponha sanções ou multas a quem desrespeita o olfato. Coletivo e individual.

Sim, coletivo porque respiramos o cheiro do rio fétido que política pública nenhuma teve competência para erradicar. Sim, coletivo porque respiramos o monóxido ou dióxido de uma indústria seja de qualquer bem manufaturado que não tem a devida fiscalização do município. Individual porque ainda convivemos com pessoas do século XIX, que ao invés de tomar banho se entopem de perfume. Essas também deveriam ser multadas.

Acredito que todos tenham um DNA olfativo estabelecido lá atrás quando os sentidos começavam a amadurecer com o cheiro do leite do seio da mãe, com o primeiro cheiro de brisa do mar, com o primeiro vento vindo da montanha que entrou por sua boca e nariz e esculpiu sua forma de sentir o mundo e suas fragrâncias…

Será que por não ter nascido em uma mina de carvão, nem em uma plataforma de petróleo eu seja diferente?…

Não quero que meu DNA olfativo seja alterado pelo escapamento dos automóveis, pelas descargas da indústria e pelo frescor falso do ar-condicionado dos templos da pós-modernidade.

*Paulo Atzingen é jornalista

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