Há dias, numa manhã em Montesinho, na Terra Fria Transmontana, encontrei Dona Marcelina à porta de casa. Montesinho é uma aldeia típica daquela região, com casas de granito e quotidiano rural; no alto da serra e dentro do parque natural de mesmo nome, na fronteira com a Espanha. Dona Marcelina é viúva, miúda, falante, nascida ali mesmo, talvez, há mais de oitenta anos; pais e irmãos falecidos, filhos e sobrinhos emigrados e uma filha em França – não aquela que você está pensando, é outra, uma aldeia a pouco mais de 10 Km dali. A filha de vez em quando vai ter com a mãe, que vive só em casa de pedra, com dois pisos. No andar de cima, a varanda de madeira serve de cobertura para a entrada, no rés de chão; justamente onde a encontrei no início deste parágrafo.
Guardadas as distâncias, já que sem máscaras, somos quatro à volta de Dona Marcelina. O que é isso? Puxei conversa. São couves; respondeu enquanto mostrava-me o molhe grande, com mais ou menos um quilo da verdura. Estão muita feias, são pros animais; arrematou, apontando com a cabeça e os olhos para o quintal no alto, atrás e ao lado da casa. O acesso ao topo do terreno é feito por rampas e escaleiras assimétricas. Entre elas, quatro terraços ascendentes cultivados com hortaliças, no primeiro; batatas, no segundo – ela quem disse –; maçãs e peras, no terceiro, e uns tantos arbustos no último – não perguntei o que são. Lá acima, no limite de onde a vista alcança e depois, estão as castanheiras. São árvores grandes e densas, e são muitas. Concluí que os animais estavam no alto, à sombra delas.
Fico eu a indagá-la sobre família, horta, criação e castanhas. Nossa conversa flui: a maçã deu pouca, e está muito má; as batatas também não estão grande coisa; as cebolas deram bem
Os outros saem, e fico eu a indagá-la sobre família, horta, criação e castanhas. Nossa conversa flui: a maçã deu pouca, e está muito má; as batatas também não estão grande coisa; as cebolas deram bem… Já não pagam nada pelas castanhas, apareceu um espanhol que paga melhor, não fosse isso, ficavam nos pés… Antigamente, aqui caía um nevão assim – disse-me enquanto indicava a altura com uma das mãos; meio metro, presumo –, dava trigo, centeio, dava pão; agora, quando muito gea, e o pão vem de fora. O inverno é curto e já não faz o frio que fazia antigamente. É que, agora, o tempo é diferente…
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Dona Marcelina sente o tempo diferente. As gentes do campo, aqueles que marcam os anos pelas estações, sabem que já não estão garantidos os meses de chuvas, de neve, de vento, de seca ou de calor. O clima alterado – deslocadas as sazões, os dias de semear e colher, a época das flores, das crias e dos frutos, a temporada em que vêm ou vão os pássaros –, toda a natureza em desequilíbrio, atormenta primeiro o campesino; que tenta adaptar-se.
Difusa é a atenção nas cidades. Mesmo importunados pelo racionamento de água, o avanço do mar, a fumaça, a chuva negra e as epidemias, é através dos jornais, das redes sociais e das imagens na tevê que as catástrofes passam do lado de fora das janelas. Onde nunca houve tempestades, furacões, cheias, secas, frio ou calor intenso, agora há. Sentem as vítimas. Há manifestações também: Deus sabe o que faz, dizem os simplórios; o clima sempre mudou e a atividade humana não tem nada que ver com isso, dizem os cínicos; vocês roubaram os meus sonhos e a minha infância com palavras vazias, disse “a pirralha”. A maioria não diz nada. Enquanto isso, arde a floresta e a boiada passa…
Despeço-me de Dona Marcelina e caminho sem pressa ao encontro dos outros; que lá vão distantes.