POR OSVALDO ALVARENGA
No séc. XV, a Península Ibérica era o centro do judaísmo no mundo. Por cá vivia a maior parte, os mais cultos, os mais influentes e os mais ricos hebreus da época. A contribuição sefardita foi fundamental para a primazia dos reinos ibéricos nas áreas marítima e militar. Diferente do que ocorria na futura Espanha, em Portugal, ainda que existisse hostilidade por parte do povo, do clero e de alguns fidalgos, a Coroa protegia os judeus; que viviam integrados à sociedade; tendo muitos alcançado posições de grande relevo: diplomatas, financistas, conselheiros, cosmógrafos, administradores, tesoureiros e médicos régios. Essa situação mudou drasticamente no reinado de D. Manuel I que, em outubro de 1497, por casamento com a infanta de Castela e Aragão, ofereceu a conversão forçada ou a expulsão do reino a todos os judeus e mouros forros, com prazo de vinte anos para abandonarem os costumes profanos e adotarem integralmente a fé católica. Coagidos, a maioria ficou, uns converteram-se, outros, falsos convertidos, criptojudeus, marranos, mantiveram oculta a fé e as tradições; todos chamados cristãos-novos, equiparados em deveres aos cristãos-velhos e antipatizados por eles, sofreram perseguições, chacina, até que, por fim, em 1536, já no reinado de D. João III, muito mais em razão da reforma protestante, tema quente da época, foi instalada a Inquisição em Portugal. E como houvesse pouco ou nenhum protestante neste pedaço da Europa, os cristãos-novos foram as vítimas primordiais do Santo Ofício por longos 285 anos.
Iêda e eu tiramos cinco dias para conhecer algumas das judiarias beirãs. Na semana mais tórrida deste verão, passamos por Castelo Branco, Covilhã, Sabugal e Belmonte. No último dia de visitas, reservado à Guarda, a temperatura caiu; 14 graus informou-me o Google. A Guarda é fria. Tem clima de montanha, invernos gelados, neva com regularidade e verões curtos e, dizem, mornos. O frescor repentino veio mesmo a calhar. Com maior vigor e sem o agastamento dos outros dias, caminhamos pelo arcaico burgo, no intramuros da cidade medieval, que já existia antes, mas foi regiamente fundada por D. Sancho I, o segundo rei de Portugal, em 1199. Veio com D. Dinis, o sexto rei, ao final do séc. XIII, a prova da existência de uma apreciável comunidade judaica na Guarda e um exemplo do tratamento cuidadoso que a Coroa reservava ao povo judeu: está documentado em carta régia a concessão das casas da freguesia de São Vicente, onde já havia sinagoga instalada, para a formação da maior judiaria da cidade.
A Judiaria Nova nasceu pegada à Porta d’El Rei, ainda lá, gótica, inserida num troço da fortaleza, a antiga entrada, a principal entrada, na principal via da antiga urbe protegida; trajeto para o primitivo Paço Real e, séculos depois, para a Sé, também lá, imponente e preservada, gótica e manuelina, erguida entre os anos de 1390 e 1517, como tudo à volta, toda de pedra. No bairro judeu, justo no principal mercado, acostado à muralha, amplificado para o norte e o leste depois do édito de expulsão dos Reis Católicos, no eixo central do burgo, limitado pelas ruas de São Vicente e Direita, os sefarditas, maioritariamente gentes dos mesteres, artesãos, sapateiros, correeiros e tecelões, também almocreves e regatões, viviam, produziam e vendiam os seus produtos; daí as casas de dois ou mais pisos e duas portas, a larga para oficina e comércio no rés de chão e a outra para a escada que leva à morada, que lá permanecem, umas em ruínas, muitas de pé, habitadas, outras modernizadas com tratamento contemporâneo em intervenções às vezes felizes, mas nem sempre.
Do paço real e do castelo quase nada resta: a Torre de Menagem, no cume, a mais de mil metros de altitude, miradouro e museu; a Torre dos Ferreiros, miradouro também; e restos de muralha, poucos troços próximos às entradas, pedras que sobraram dos desmanches do séc. XIX para a construção do Forte Velho, fora da cidade, e, depois, do cemitério. A porção maior da muralha ainda de pé, está fora do alcance de olhos diletantes, resta escondida atrás de velhos edifícios agregados; no cerne estão lá também. Em todos os casos, são as quelhas sinuosas, sombreadas por primitivas casas cinzentas de granito, de cinza-areia, de cinza-musgo, que se vergam sobre elas e tornam a cidade melancólica, soturna e enigmática, dando encanto à parte velha, no intramuros da Guarda.
Da Península Ibérica, os sefarditas espalharam-se pelo mundo. Dos que partiram de Portugal, beneficiaram-se mais os otomanos e os holandeses. Os primeiros porque conheceram a prensa, a pólvora e os segredos da navegação; e logo, tornaram-se competidores no comércio marítimo de especiarias e incômodos rivais nos entrepostos, feitorias e portos na Ásia; obrigando novas e mais custosas rotas aos navegadores europeus. Os segundos, porque, herdaram mapas e maestria em navegação, manufatura e comércio e receberam capital e competência para a criação e manutenção da Companhia Holandesa das Índias Orientais e da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, referenciadas nos livros de escola, pilharam embarcações, conquistaram possessões dos reinos ibéricos na Ásia, África e Américas, competiram e estorvaram os negócios da Coroa Portuguesa no comércio de especiarias da Ásia, de açúcar do Brasil e de escravizados da África.
Concluída nossa viagem às Beiras, logo cedo no dia seguinte, no regresso a Lisboa, desta vez por autoestradas, a paragem é certa em Santarém, no Ribatejo, outra paisagem; “capital do gótico”, berço do Infante Santo. Chegamos justo à hora do almoço e, não por acaso, corremos para a Taberna Ó Balcão, do chef Rodrigo Castelo. O restaurante fica num ponto central da cidade, num sobrado antigo, ocre, próximo ao W Shopping, onde deixei o carro – e ainda me pergunto como foi que desci pela contramão, naquela estreita rampa, três pisos de garagens, sem causar nenhum acidente. Sorte nossa ou efeito da Covid, mesmo sem reservas, conseguimos mesa. O interior não é grande, nas paredes pintadas de verde, azulejo, prateleiras de vinho e pratos pendurados, decoração agradável e sala refrigerada sem estar gelada. A cozinha é aberta, ampla, contei – já não me lembro – cinco ou sete pessoas lá dentro. Detalhes que pouco importam. O atendimento, sim, esse conta mais, é cortês e eficiente, sem afetação nem despojo. Os dois garçons e o chef, que simpático percorre as mesas, tira dúvidas, passa informações e dicas sobre preparo, dão conta das poucas mesas. Avançando no meu conceito de importância, a carta de vinhos oferece boas opções por bons preços; desta vez experimentamos o ribatejano Quinta do Alqueve Tradicional Branco; leve, fresco, ligeiramente encorpado e frutado. Importa mesmo a comida: aroma, textura, sabor…
O chef Rodrigo é famoso por valorizar a cozinha e produtos regionais, inova na escolha dos ingredientes e na preparação dos pratos. Para começar, há sopa de peixe do rio com ovas de barbo, beringela grelhada com caldo de legumes e tomate, língua de vaca curada e fumada, morcela de arroz de cabidela, coscorão do rio até ao mar, croquete de rabo de toiro com mostarda, escabeche de coelho em volume de filhós e há muito mais; depois, há arroz da lezíria e arroz de lingueirão, bacalhau assado com mangusto, costelinhas de atum rabilho com couve grelhada e manteiga de limão, cação lima limão, bochecha de vitela 33 horas, lombo de malhado de Alcobaça maturado, vazia de vaca velha maturada por 60 dias e tanto mais, muito mais; ao final, moca das velhas, eriçado de almoster com pêra bêbeda e gelado de figo, pão de ló Rio Maior com gelado de queijo de ovelha, Nem Tudo é Limão e mousse de chocolate com cheirinho. Tanto a escolher, depois de muito vacilar, Iêda e eu, optamos pelo mais fácil: o menu do dia: coscorão de ceviche e espumas de camarão do rio; pão, cação e ovo em caldo de peixe; e de sobremesa, gelado de limão, farofa de castanhas e queijo curado de ovelha ralado. Nem queira imaginar! Está decidido, voltaremos muito mais vezes a Santarém.
Portugal, tão rico e diverso, guarda mais segredos no interior. Das Beiras e do Ribatejo, de celebrada beleza e história, a gastronomia nos arrebatou.
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