A peregrinação, embora descrita de diferentes formas por correntes religiosas ou por grupos leigos, guarda um sentido comum: a busca da transcendência, do místico. Neste texto da colaboradora do DT, Sylvia Leite, conhecemos um pouco mais dessa prática.
Sylvia Leite é autora do blog Lugares de Memória.
Desde os primeiros tempos, as viagens têm sido usadas como instrumentos de aprendizado e transformação pessoal. Por outro lado, as tradições religiosas têm exercido, ao longo do tempo, um importante papel na educação, na conduta e no destino dos indivíduos.
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Esses dois fatores reunidos fizeram com que a busca do conhecimento de si mesmo e do aprimoramento pessoal por meio de viagens tenha ocorrido, quase sempre, dentro da esfera do sagrado – ou em suas proximidades –, recebendo o nome genérico de peregrinação.
O peregrino, embora descrito de diferentes formas por correntes religiosas ou por grupos leigos, guarda um sentido comum: é alguém que saiu do lugar onde vive – geralmente movido por razões religiosas ou místicas – e atravessou dificuldades externas e internas para chegar a um lugar sagrado ou simplesmente desconhecido. Ao voltar para casa, depois de ter alcançado seu objetivo, o peregrino terá adquirido não apenas a vivência do espaço físico visitado, com tudo que isso implica no plano material, mas também, e principalmente, uma diferente condição emocional ou espiritual.
Nesse sentido, a viagem de peregrinação poderia ser considerada um rito de passagem que leva o peregrino a mudar de posição em sua trajetória pessoal. Algo que talvez possamos entender de forma análoga a rituais sagrados que determinam a transição entre status sociais, como o casamento, celebrado em várias religiões para marcar a travessia entre a vida de solteiro e a vida de casado; ou o Bar Mitzvá, que concede maioridade religiosa aos adolescentes judeus; ou, ainda, os rituais presentes em diversas etnias indígenas e que celebram a passagem da infância para a vida adulta.
O que há de comum entre todos esses eventos, sejam peregrinações ou ritos de passagem, é seu poder de provocar reflexões e mudanças, e de agregar compromissos compatíveis com a nova realidade. É a conquista, pelas pessoas em questão, de uma nova perspectiva espiritual ou emocional, determinada por uma mudança interna calcada na experiência e/ou no rito.
As romarias cristãs
Quando se fala em peregrinação cristã, nos vem logo a imagem do Caminho de Santiago – uma longa caminhada em direção a Santiago de Compostela, na Espanha, que os cristãs faziam, na Idade Média, com o fim de alcançar indulgências e, assim garantir um lugar no céu.
O caminho começa oficialmente em Saint- Jean- Pied-de Port, na França, e se estende por 780 km. Embora seja esse o trajeto reconhecido pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, existem vários outros caminhos e já se chegou a dizer que o Caminho de Santiago é aquele que você percorre entre sua casa e Santiago de Compostela.
Atualmente, o Caminho de Santiago não é mais restrito aos fiéis católicos. Embora seja grande o número de devotos, já se encontram hoje inúmeros caminhantes sem qualquer vínculo com a religião, que buscam apenas um contato com a espiritualidade no sentido mais amplo da palavra ou uma oportunidade de autoconhecimento. Há, ainda, os que encaram o caminho como uma espécie de turismo cultural ou como simples opção de tracking – isto é, caminhada em contato com a natureza.
Mas o Caminho de Santiago é apenas uma das peregrinações cristãs e não é a principal. Em primeiro lugar estaria Roma onde teriam sido martirizados os apóstolos Pedro e Paulo. A viagem a Roma inclui, hoje, a visita ao Vaticano, que além de centro da religião católica é o país de moradia de sua autoridade máxima, o Papa.
A viagem cristã pode ser feita também à Terra Santa, representada por Belém, Jerusalém, e o Mar da Galiléia. Se estudarmos a história das peregrinações cristãs, veremos que Jesus costumava peregrinar a Jerusalém.
E, por fim, os cristãos podem escolher lugares associados a santos, visões e milagres, como Fátima, Lourdes ou Canterbury, além de outras. No Brasil, há vários locais de peregrinação cristãs como Belém, na época do Círio de Nazaré, Nossa Senhora Aparecida, em São Paulo e Juazeiro do Norte, no Ceará, entre muitos outros.
A Peregrinação no mundo islâmico
Tão ou mais divulgada que o Caminho de Santiago é a Peregrinação a Meca (Hajj) – uma viagem que todo muçulmano adulto deve fazer pelo menos uma vez na vida, desde que tenha condições econômicas e de saúde.
A Peregrinação a Meca é considerada o quinto e último pilar do Islamismo, antecedido pela profissão de Fé (La Ilaha Ila Allhah ou Não existe Deus senão Deus), pela Oração (ou Salat), pelo Jejum (ou Ramadan) e pela Caridade (ou Zakat).
Os peregrinos devem ir à Meca no último mês islâmico (Dhu al-Hijja), entre o oitavo e o 13º dia. Depois de uma preparação que inclui as famosas sete voltas em torno da Caaba – edifício em forma de cubo que guarda a pedra negra sagrada dos muçulmanos – os fiéis fazem uma viagem coletiva que inclui orações e pernoites no deserto.
Mas a viagem à Meca não é a única no âmbito do islamismo. Os adeptos do Sufismo – braço místico do Islã, comparável à Cabala do Judaísmo e ao Cristinanismo Esotérico – realizam peregrinações a tumbas de homens santos como Bahaudin Naqshband, no Uzbequistão; Khoja Ahmed Yasawi, no Cazaquistão; Ibn Arabi , na Síria; e Jalaludin Rumi, em Konya, na Turquia, para citar apenas alguns.
O mesmo tipo de prática é feito pelos Xiitas – um ramo do Islamismo que considera Ali, que era genro e primo do profeta Maomé, como seu herdeiro legítimo e não aceita a sucessão histórica.
As viagens sagradas dos budistas
O Budismo também direciona seus seguidores a pelo menos quatro cidades, em diferentes países. A mais procurada talvez seja Lumbini – local de nascimento do Buda histórico, o príncipe Sidartha Guatama – , localizada na região dos Himalaias, no Nepal.
O lugar foi declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, em 1997, e recebe anualmente 400 mil visitantes, entre peregrinos e turistas. Os que desejam homenagear Buda percorrem uma rota composta por um monumento denominado Coluna de Asoka, que remete a um líder indiano defensor da paz; e pelas Estupas – um conjunto de oito monumentos relacionados a eventos da vida de Buda.
Os devotos fazem questão, ainda, de conhecer o templo de Maya Devi – batizado com o nome da mãe de Buda por ter sido ali, segundo a tradição budista, que ela lhe deu à luz. Antes de entrar no templo, muitos banham-se em uma espécie de reservatório que seria remanescente do período de nascimento do príncipe.
Ainda no Nepal, budistas peregrinam para visitar Kapilavastu, lugar onde o príncipe Gautama teria vivido até seus 29 anos. As outras duas cidades sagradas do budismo ficam na índia. Uma delas é Kushinagar, no estado de Uttar Pradesh – local de morte do fundador do Budismo. A outra é Bodh Gaya ou Bodhgaya, no estado de Bihar , onde Buda teria se iluminado e criado sua doutrina por volta do século 5 Antes de Cristo.
Templos e mosteiros budistas também são considerados locais de peregrinação. O que recebe mais seguidores talvez seja o Templo do Dente, no Sri Lanka, chamado assim por guardar o dente canino de Buda.
Os locais de peregrinação dos Hindus
Embora a peregrinação não seja obrigatória no Hinduísmo, é grande o número de fiéis que se desloca até as cidades sagradas. A mais procurada costuma ser Varanasi, localizada à margem do famoso Rio Ganges, cujas águas, segundo os hindus, é capaz de purificar suas almas e, em alguns casos, até de curar seus corpos, embora do ponto de vista químico suas águas sejam consideradas inadequadas para o banho.
A medida da importância de Varanasi para os Hindus pode ser dada por uma crença segundo a qual quem morre na cidade, ou a no máximo 60 km de distância, fica livre do ciclo das encarnações. Movidos por essa esperança, idosos e pessoas em estado terminal costumam mudar-se para lá e passam a viver em abrigos criados com o propósito de recebê-los.
Outra importante peregrinação da Índia é o Amarat Yatra – que leva os fiéis à caverna de Amarnath, localizada a quase quatro mil metros de altitude, na região da Caxemira. Depois de percorrer, em uma montanha do Himalaia, de 14 a 36 km de subida – a depender do caminho escolhido -, os peregrinos se reúnem dentro da caverna, em frente a uma estalagmite que para o Hinduísmo é a representação de Shiva.
Nem todos os peregrinos têm preparo físico para encarar o desafio, que acaba causando mortes. Mesmo assim, a peregrinação é realizada por centenas de milhares de fiéis motivados por uma tradição hindu segundo a qual foi nessa caverna que o deus Shiva revelou a sua esposa Parvati o segredo da imortalidade. Inspirados nessa narrativa, muitos acreditam que indo ao local poderão tornar-se imortais.
Peregrinações associadas ao Xamanismo
Além das peregrinações vinculadas a religiões com grande número de adeptos, e, portanto, popularmente mais conhecidas, existem também aquelas, geralmente vinculadas a culturas tradicionais e ao Xamanismo, que atraem pessoas das mais diversas crenças em busca cura ou soluções de problemas. Exemplo disso é a peregrinação às lagoas de Las Huaringas, localizadas na província de Huancabamba, no Peru.
As crenças que motivam os peregrinos têm inspiração espiritual na cultura dos Incas – donos do maior império da América Pré-Colombiana que habitaram a região até 1572, quando seu último reduto foi tomado pelos espanhóis.
Os xamãs locais, e os peregrinos atraídos à região, acreditam que as águas dessas 14 lagoas guardam não apenas propriedades curativas, como ocorre, por exemplo, com as águas termais, mas possuem também poderes mágicos.
Outro exemplo de peregrinação inspirado na Cultura Inca são as trilhas a Machu Picchu, também no Peru. Embora não sejam conhecidas como peregrinações, e tenham uma pegada mais turística e até comercial, essas trilhas, que costumam durar pelo menos dois dias, são vistas por muitos adeptos como uma viagem mística capaz de proporcionar grandes transformações.
A viagem como agente de mudanças
Como se viu em relação a Santiago de Compostela, as peregrinações, embora ainda tenham forte sentido religioso, ou místico, estão atraindo cada vez mais pessoas sem qualquer ligação com as religiões que as motivam. Até as peregrinações mais tradicionais, que seguem sendo realizadas apenas por fiéis tradicionais ou convertidos, como a de Varanase, por exemplo, já começaram a despertar o interesse de turistas, que, em geral, participam apenas como observadores.
Mas mesmo motivados por razões culturais, ou pelo desafio físico, como é o caso de Santiago de Compostela e de Machu Picchu, os viajantes que têm a experiência de peregrinar costumam relatar suas viagens como linhas divisórias em suas vidas. As razões apontadas são quase sempre o aprendizado adquirido com a experiência e a mudança de estado interior provocada pelas dificuldades enfrentadas, pelos choques culturais e pelas reflexões feitas durante as travessias.
SYLVIA LEITE – Lugares de Memória
Sylvia é jornalista, com mestrado em Letras e doutorado em Filosofia, pela USP. Fez MBA em Comunicação Corporativa pela Fecap e especialização em Mídias Digitais pelas Faculdades Senac. Atuou cerca de 25 anos na grande imprensa, em revistas especializadas e em produtoras de vídeo. Atualmente trabalha com produção de conteúdo e, desde de 2018, escreve e edita o blog Lugares de Memória.