Especialistas comentam os erros no investimento e na condução de uma das principais obras de Paes
O nosso legado olímpico é de exceção”, criticou Mariana Werneck, mestre em planejamento urbano pela IPPUR/UFRJ. “Sofremos grandes mudanças que permitiram essa relação entre o público e o privado, e o que ficou para trás é o interesse público”, completou. A pesquisadora do Observatório das Metrópoles se refere as obras do Porto Maravilha, uma das grandes dívidas da gestão do ex-prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB). Em uma análise da conjuntura do município a partir do estudo “O Rio em perspectiva: um diagnóstico de escolhas públicas”, um levantamento da FGV/DAPP revela que os preços dos papéis que capitalizam a obra mais do que triplicaram desde 2011, e os títulos passaram a não ter compradores interessados, o que representa um problema fiscal para a cidade.
Mas o enredo realmente complexo está em como se deu o processo de obras no Porto, e as consequências catastróficas dele, principalmente, para a população local.
“Quando se fez esse desenho do Porto, foi utilizado um instrumento que já era polêmico para os urbanistas, e que já vinha sendo muito usado em São Paulo e outras cidades”, comentou Mariana. “A gentrificação possivelmente ocorreria se o processo tivesse dado certo, ou seja, seria incorporado ali o modelo elitista, e aquela população tradicional ia acabar sendo expulsa indiretamente por um aumento no preço do terreno”, explicou o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, Cláudio Ribeiro.
Veja também as mais lidas do DT
O fenômeno chamado gentrificação afeta uma região pela alteração das dinâmicas da composição do local, tal como novos pontos comerciais ou construção de novos edifícios, atingindo, principalmente, a população de baixa renda local, que não consegue se manter devido à valorização do terreno.
O ex-prefeito do Rio Eduardo Paes nunca negou o fenômeno. Em entrevista para a BBC News no dia 15 de agosto de 2015, Paes reafirmava sua posição rebatendo críticas de urbanistas: “O fenômeno mundial da gentrificação ocorre em grandes cidades, do qual Londres talvez seja o caso mais explícito. É algo que acontece em Nova York, Berlim, e também no Rio, que é um processo de sobrevalorização conforme as cidades se qualificam. Na Zona Sul do Rio, por exemplo, não há mais onde construir, então é óbvio que o que já existe vai ficar mais caro. E aí você precisa requalificar outras áreas da cidade, como a Zona Norte”.
Claudio explica que a partir desse processo, a cidade do Rio fica mais segregada. “Uma cidade que tem o preço solo mais caro, é mais cara para todo mundo. Só é vantagem para os donos dos imóveis”, rebateu, acrescentando: “Em vez de trazer mais gente para onde tem urbanização, o que o ex-prefeito fez foi afastá-las. E aí a cidade, agora, está expandida, e mais cara de se manter. Temos como herança uma cidade muito pior do que antes”.
Mas Claudio ressalta que o processo inicialmente previsto não deu certo, e que agora a capital carioca tem que arcar com um legado de elefantes brancos, dívidas exorbitantes e uma crise econômica que parece não ter fim.
“Podemos pensar em uma espécie de gentrificação acelerada e brutal, porque o que nós temos hoje é um vácuo habitacional em uma das poucas áreas centrais do Rio”, completou.
>> Tarcísio Motta protocola requerimento de CPI sobre Porto Maravilha
O projeto
O Porto Maravilha, como ficou conhecido, é a maior parceria público-privada da história do Brasil, com custo de mais de R$ 8 bilhões. A Operação Urbana Consorciada da Região do Porto tinha o objetivo, segundo à então prefeitura, de “qualificar o sistema de infraestrutura de saneamento, de iluminação pública, de telecomunicações, de mobilidade urbana, prover a região com equipamentos públicos e estimular a construção de imóveis comerciais e residenciais”. Em declaração no dia 28 de novembro de 2016 em Tóquio, durante a conferência “Debrief”, Paes afirmava que “o maior legado dos Jogos foi o Porto Maravilha”, e acrescentava que a reforma não teria sido possível sem a Olimpíada.
O conceito de Operação Urbana se baseia, principalmente, em modificar a legislação de uma determinada região da cidade dando incentivo para que investidores realizem obras, utilizando o valor arrecadado do investimento na melhoria daquele mesmo local.
Especialistas explicam que a forma clássica de fazer isso é mexendo com a questão do potencial construtivo, que é determinado por lei. Para aumentar esse valor, a prefeitura oferece aos investidores um aumento no potencial de construção. Interessados em explorar esse isso devem comprar Certificados de Potencial Adicional Construtivo (Cepacs): títulos usados para custear operações urbanas que prometem recuperar áreas degradadas nas cidades.
“A natureza da operação urbana é polêmica. Eu consigo construir acima do que está previsto na legislação, mediante uma contrapartida que são os potenciais construtivos [Cepacs]. O Cepac, pela forma que foi feita no Estatuto das Cidades [Lei Federal nº 10257/2001], determina que esses recursos, em vez de compor um fundo, só pode ser utilizado dentro dos limites da operação urbana. No caso do Porto Maravilha, seria usado dentro do limite do Porto”, explica Mariana Werneck, completando: “E aí que surge o primeiro problema: se eu tenho um fundo para investir na cidade inteira, poderia investir nas áreas mais carentes de infraestrutura. Agora, se eu componho um fundo em uma pequena área, em vez de diminuir as desigualdades sócio-espaciais, eu aumento, porque estou beneficiando uma parte pelo todo”.
E como fazer com que o poder público especifique para onde vai o dinheiro, além de regular essa compra e venda de potencial construtivo? Para isso, a então Prefeitura do Rio criou a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp), instituída pela Lei Complementar 102/2011. Entretanto, a Cdurp terceirizou a própria função, criando o consórcio Porto Novo — a maior parceria público-privada do País –, que nesse caso é formada pelas empreiteiras Odebrecht, Carioca Engenharia e OAS, todas envolvidas na Operação Lava Jato. Ou seja, o Cdurp, por mais que, oficialmente, seja um órgão vinculado à prefeitura, todas as decisões tomadas por ele, na verdade, vêm da concessionária Porto Novo, que é privada.
“Então você tem todo o investimento de dinheiro público sendo decidido pela iniciativa privada. Usaram recursos do município para proteger interesses das empreiteiras ”, concluiu Mariana.
A crise
O segundo problema surge quando se entende a natureza das Cepacs. Esses potenciais construtivos são, na verdade, títulos, que inclusive estão na Bolsa de Valores. Ou seja, tem o valor flutuante de acordo com o mercado e a economia. Isso permite, por exemplo, que um investidor especule apenas no mercado de ações, sem interesse em construir algo na região do Porto, comprando e revendendo de acordo com a valorização e desvalorização dos títulos – o potencial construtivo, então, vira uma moeda.
“Cria-se uma desvinculação e financeirização da política urbana, porque tem um ativo financeiro no meio. Títulos que valorizam e desvalorizam segundo interesses do mercado significam que o poder público tem a necessidade de transformar esse papel o mais atrativo possível para venda. E aí fica claro porque as operações urbanas só funcionam em áreas que são de interesse do mercado imobiliário. Tudo deve ser feito em nome da proteção desse investidor para que os Cepacs sejam vendidos”, explicou Mariana.
Entretanto, no caso do Porto Maravilha, todos os potenciais foram comprados instantaneamente pela Caixa Econômica, em um leilão que ficou conhecido como cerimônia oficial em 2011, onde Eduardo Paes recebeu um grande cheque de R$ 3,5 bilhões do Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha (FIIPM), criado pelo FGTS. O conselho do FGTS teve que mudar as regras de utilização de recursos, de forma que se reconhecesse o processo como investimento em infraestrutura, permitindo, dessa forma, o uso do fundo.
O FGTS se comprometeu com o valor de R$ 7,609 bilhões.“Porém, eles [a Caixa] estavam planejando que os Cepacs valorizassem a ponto de cobrir esse valor, como também remunerar o FGTS pelo investimento que estava sendo feito. A ideia era de que o fundo recebesse remuneração de mais 6,5% ao ano do IPCA. Acontece que a Caixa ficou com o estoque de Cepacs inteiro na mão, e ela determina a quanto ela quer vender para cobrir esse valor”, explicou Mariana.
Mas a Caixa não cumpriu o ritmo de repasses acordado na compra dos títulos da Prefeitura, que usa o dinheiro para pagar a concessionária Porto Novo. O mercado imobiliário do Rio se aqueceu como um todo em 2011 por conta da alta do preço do petróleo, e quando o valor do petróleo caiu e a crise econômica disparou, os potenciais compradores desapareceram, e a demanda por novos empreendimentos não existiram mais. Com isso, menos de 10% dos Cepacs foram revendidos. Além disso, o banco também firmou acordos para obter participação em empreendimentos usando os títulos como ativo – o que eleva esse percentual para cerca de 34%. O projeto ainda foi modificado 13 vezes aumentando o tamanho da parceria público-privada (PPP).
Já em 2015, o FGTS socorreu o fundo da Caixa com mais R$ 1,5 bilhão para manter o cronograma de desembolsos. Em maio de 2016, porém, o fundo ficou de novo sem dinheiro e se declarou ilíquido, prejudicando o início da sexta etapa de obras na região, orçada em R$ 1,2 bilhão.
“Isso significa que você não consegue trocar esses papeis por dinheiro de forma líquida. É como se você tivesse uma hipoteca que ninguém se interessa, porque é um titulo que não é valorizado no mercado”, explicou Andressa Falconiery, economista da FGV, acrescentando: “A aposta da então prefeitura e da gestora Cdurp era de que aquela área do Porto fosse valorizada. Então se vende um titulo, e com esse dinheiro revitaliza a área, para depois haver construções e empreendimentos. Mas o esquema apresenta um problema quando a operação trava, e ai o que fica a ser esclarecido ou de alguma forma resolvido é como dar liquidez a esse fundo”.
Mariana lembra de outra dificuldade: “Os recursos do FIIPM estão bloqueados por conta da Lava Jato”, disse. E o problema é que o financiamento de obras e serviços públicos na região, como coleta de lixo e iluminação pública, é feito a partir da revenda desses Cepacs.
“Por conta disso, foi feita uma negociação para que a Caixa usasse os R$ 200 mi disponíveis no fundo para iniciar a nova etapa de obras, e a então prefeitura recomprou o Cepacs para poder gerar recurso e pagar a parceria público-privada. Ou seja, os Cepacs inicialmente emitidos para que a prefeitura não precisasse usar recursos orçamentários próprios estão sendo recomprados por meio da Cdurp para que as obras previstas continuem a caminhar. Isso para que o consórcio das empreiteiras não fique com o mico de não receber”, completou a pesquisadora.
A partir daí começou o desequilíbrio, e entrou na historia a questão da habitação: “O conselho do FGTS, preocupado com a rentabilidade, encomendou ao Ministério das Cidades uma instrução para normatizar as operações que possam receber recursos do FGTS”, explicou Mariana.
Nesse capítulo estava prevista a necessidade de que, para haver um novo aporte, a operação urbana tinha que cumprir requisitos, dentre eles, apresentar um plano de habitação de interesse social naquela área.
“A prefeitura que tinha se esquivado da habitação, se viu obrigada a fazer isso para receber esse novo aporte. Isso foi aprovado em junho de 2015, mas ninguém nunca fez nada. Todos os prazos já foram estourados”, finalizou.
Remoções
Os três bairros da zona portuária — Gamboa, Saúde e Santo Cristo — ocupam 5 milhões de metros quadrados, quase o tamanho de toda a orla da Zona Sul. O Porto Maravilha é um projeto que privatiza a gestão urbana dessa área onde moravam cerca de 30 mil pessoas e onde estão localizadas diversas favelas, como o Morro da Providência, da Pedra Lisa, o Morro da Conceição, Livramento, Morro do Pinto e São Diogo.
Ao longo desses últimos anos, todo o Rio de Janeiro sofreu com o maior processo de remoções de comunidades da história da cidade – que hoje atinge cerca de 90 mil pessoas. A gestão do ex-prefeito Eduardo Paes entre os anos de 2009 e 2013 promoveu mais despejos do que Pereira Passos e Carlos Lacerda juntos, segundo dados de uma pesquisa que se transformou no livro ‘SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro olímpico’.
A região do Porto não ficou de fora dessa estatística. “Logo no começo da gestão do Paes, as ocupações do Centro foram as primeiras a ser removidas. No Morro da Providência, algumas das remoções foram justificadas pela construção do teleférico, que além de ter um horário muito restrito, não é útil para o morador da comunidade”, disse o arquiteto da UFF, Lucas Faulhaber, autor do livro.
Com a pesquisa, a intenção de Faulhaber era provar que a exclusão é resultado sobretudo de uma estratégia de planejamento urbanístico, enquanto muitos colocam a ausência de planejamento para justificar uma segregação da cidade.
“A então prefeitura usou muito o argumento do risco. Os argumentos vão mudando ao longo do tempo: a última foi a Olimpíada. Mas a questão é imobiliária”, explicou.
O professor da UFRJ Claudio Ribeiro acrescenta que não houve ausência de planejamento, o que aconteceu foi um planejamento de exclusão, porém, para ele, “irresponsável”: “Muita gente acumulou muito com isso. É um projeto imediatista e elitista. Para fazer isso tudo, teve muita gerência, só que irresponsável”.
Desde o início das obras para a Copa e a Olimpíada, Eduardo Paes foi questionado sobre as remoções. Ele repetia que as obras foram feitas não em função dos eventos esportivos, mas para beneficiar a população. Em 2014, quando recebeu da Anistia Internacional um abaixo-assinado pelo fim das remoções compulsórias, Paes admitiu que a prefeitura manteve “pouco diálogo” com moradores removidos em função da construção dos BRTs (linhas expressas de ônibus) Transcarioca e Transolímpica.
Porém, antes, em 2013, em entrevista à revista Carta Capital, o ex-prefeito justificou as remoções. “A maior parte das remoções são desapropriações formais, em áreas de classe média, classe média baixa. As remoções em favelas normalmente ocorrem em áreas de risco. A gente oferece aluguel social de 400 reais, indenizações ou uma unidade do Minha Casa, Minha Vida. É verdade, boa parte dos apartamentos fica na Zona Oeste. Mas a pessoa pode optar. Dizem que o valor do aluguel é baixo, mas eu tenho 9 mil famílias inscritas no programa. Se ele não concorda com o valor da indenização, pode recorrer à Justiça. Aliás, as indenizações que oferecemos estão superfaturadas, mas como é por uma boa causa ninguém reclama”, afirmou.
Faulhaber rebateu os argumentos de Paes, concluindo: “Existe sempre a justificativa do desenvolvimento da cidade. O que não se pergunta é desenvolvimento para quem? Esse mercado imobiliário também é construtor do programa Minha Casa Minha Vida na periferia. Então além de ganhar dinheiro removendo, ganha construindo. Essas pessoas removidas foram praticamente exiladas. E o resultado disso é a segregação social. O Porto é uma área enorme e central e poderia ser uma baita oportunidade para oferecer habitação popular, mas está sendo entregueà iniciativa privada”.