Proposta de regime transitório da Lei de Recuperação Judicial e Falências (PL 6.229/05) é perigosa

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Gabriel de Orleans e Bragança é sócio-gestor, e Luis Fernando Hiar é advogado associado, da Área de Insolvência e Solução de Conflitos do Escritório de Advocacia Lobo de Rizzo.


Atualmente tramita perante a Câmara dos Deputados Federais o Projeto de Lei nº 6.229/05 (“PL Substitutivo”), de alteração da Lei nº 11.101/2005. Diante da pandemia global do Covid-19 deflagrada recentemente, das políticas de distanciamento social e das consequências econômicas respectivas, há uma nova sugestão de alteração do PL Substitutivo, de regime transitório (arts. 188-A a 188-L). As propostas compreendem, em resumo, a criação de um sistema de prevenção à crise da empresa (arts. 188-A a 188-E) e a suspensão ou alteração de determinados dispositivos da Lei nº 11.101/05 (arts. 188-F a 188-K), cuja aplicação se dará pelo prazo de 360 dias.

Nos termos do sistema de prevenção à crise da empresa, caso o faturamento de determinado agente econômico seja reduzido em mais de 30%, o agente poderá fazer Pedido de Negociação Coletiva ao Poder Judiciário. Feito o pedido, a requerente será beneficiada por um prazo de 90 (noventa) dias de suspensão de todas as execuções contra si ajuizadas por seus respectivos credores. Esse período tem por finalidade assegurar um fôlego para que o devedor, muito prejudicado pela crise pandêmica, possa renegociar suas obrigações junto a seus credores, que tampouco poderão pleitear a decretação da falência durante a janela de 90 dias.

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O procedimento de Negociação Coletiva poderá ser requerido uma única vez e deverá ser encerrado após o decurso do prazo de 90 dias, independentemente do desfecho das negociações. No curso deste procedimento, as cláusulas resolutivas expressas em caso de inadimplência da requerente não poderão ser invocadas por credores da requerente.

Além disso, durante o regime transitório (360 dias), entre outras medidas, não serão aplicáveis as disposições dos arts. 49, §§ 1º, 3º e 4º, 73, IV e 199, §§ 1º e 3º, da Lei nº 11.101/2005.

Como consequência do mencionado acima: (i) os credores ficarão impedidos  de cobrar dívidas contra coobrigados da requerente (i.e. devedores solidários, avalistas ou fiadores), tampouco reclamar seu direito de propriedade, sejam de proprietários de imóveis, credores de leasing  ou de alienação fiduciária, além de proibir a execução de créditos decorrentes de Adiantamento de Contrato de Câmbio – ACC (cf. art. 86, II, da Lei nº 11.101/2005); (ii) o descumprimento do Plano de Recuperação Judicial já homologado não implicará a convolação  da Recuperação Judicial em Falência; e (iii) os direitos e prerrogativas inerentes aos contratos de arrendamento mercantil de aeronaves não poderão ser exercidos pelos arrendadores contra companhias aéreas em recuperação judicial ou falidas.

Chamam atenção, ainda, as seguintes alterações que serão estabelecidas caso o regime transitório seja aprovado nos termos propostos:

  • Serão suspensas, por 90 dias, todas as obrigações estabelecidas em planos de recuperação judicial ou extrajudicial já homologados;
  • Dentro do prazo de 90 dias acima mencionado, as empresas em recuperação poderão apresentar aditivo ao plano já homologado, inclusive para sujeitar créditos constituídos após o pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, que deverá ser aprovado em assembleia de credores;
  • Serão liberados, em favor das recuperandas, todos direitos creditórios de sua titularidade originária, independentemente da data de sua constituição e da existência de garantias de qualquer natureza, com a reconstituição da garantia entre o 6º e o 36º meses após o pedido de liberação; e
  • Os planos de recuperação extrajudicial poderão ser homologados pelo Judiciário se aprovados por maioria simples, e não mais por 3/5 dos créditos sujeitos a seus efeitos.
  • A falência de um devedor só poderá ser decretada se vencido e inadimplido crédito no valor mínimo de R$ 100.000,00, e não mais apenas 40 salários mínimos, conforme estabelecido no art. 94, I, da Lei nº 11.101/2005.
  • Todos os créditos detidos por microempresas e empresas e pequeno porte, independentemente da garantia ou natureza do crédito, estarão sujeitos aos efeitos dos procedimentos regulamentados pela Lei nº 11.101/2005, conferindo-lhes condições mais favoráveis em razão da vulnerabilidade de tais credores.

A proposta, ainda que com o louvável objetivo de evitar a deterioração da situação financeiro econômica dos agentes de mercado, parece-nos perigosa, gera extrema insegurança jurídica e apresenta uma série de lacunas, ao conceder prerrogativas a devedores, em detrimento de credores que também enfrentam dificuldades decorrentes da pandemia global, sem a necessária demonstração da imprescindibilidade das medidas no caso concreto e a relação direta entre a pandemia e a deterioração da situação financeiro-econômica nos procedimentos já em curso. Isto é, a proposta não separa o joio do trigo, de maneira que qualquer empresa, independentemente do estado de crise, poderá se valer de tal moratória.

Veja-se que não há previsão de qualquer sanção para aquele devedor que fizer o pedido de Negociação Coletiva sem qualquer necessidade. Não há dúvida de que, não apenas se abrirá uma porta para oportunistas em detrimento de seus credores. Pior: o volume de requerimentos por certo que prejudicará os trabalhos do Poder Judiciário, cuja máquina, como de notoriedade, já se encontra por demais assoberbada.

Aliás, a própria recomendação de queda do faturamento em 30% em si não justifica um real cenário de crise, pois não se sabe se o devedor pode, para compensar essa perda, cortar proporcionalmente suas despesas durante o período de pandemia.

Tampouco parece haver racional financeiro econômico na proibição de que o credor busque o seu crédito contra os coobrigados da empresa. Por vezes, são esses coobrigados pessoas físicas titulares de patrimônio pessoal que, se utilizado para pagamento das dívidas da empresa, viabilizará, de um lado, a recuperação do crédito e, de outro, a manutenção da atividade produtiva. Até porque, caso o pagamento seja realizado por algum de seus coobrigados, a empresa devedora automaticamente receberá a quitação daquele credor.

Defendemos que a intervenção do Estado nas relações contratuais, sobretudo nas de direito privado, deve ser realizada com muita parcimônia. Do contrário, e dessa maneira enxergamos a proposta, teme-se por uma reação em cadeia e o aumento do chamado risco sistêmico, capaz de impactar severamente no aumento das taxas de juros, câmbio, preços (inflação) e interesse de instituições financeiras na concessão de crédito. A mão invisível está no controle dessas relações e, diante de uma crise estrutural como esta, credores e devedores devem buscar a negociação como medida mais salutar. O Estado, assim esperamos, deve corresponder e trabalhar para que haja maiores incentivos fiscais e evitar propostas que possam impactar negativamente o ambiente de outros agentes econômicos.

A proposta vai na contramão, por exemplo, daquela que se encontra em pauta do Governo Federal da Alemanha na legislação de insolvência local, que compreende, até 30.9.2020 (prorrogável até 31.3.2021), a suspensão da exigência do pedido de autofalência de empresas que não se encontravam em estado de insolvência até 31.12.2019, assim como a proibição de que credores peçam a falência de seus devedores em razão de fatos posteriores a 1.3.2020 (em outras palavras, a proposta alemã se aplica caso comprovada a relação direta entre a pandemia e a crise financeiro econômica, o que não é exigido em diversas hipóteses da proposta brasileira).

Gabriel de Orleans e Bragança é sócio-gestor, e Luis Fernando Hiar é advogado associado, da Área de Insolvência e Solução de Conflitos do Escritório de Advocacia Lobo de Rizzo.

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