De certa forma, o exílio é um rapto ao revés; se o rapto é uma circunscrição dentro de um espaço definido, controlado por quem o sequestra, o exílio é o rapto invertido, em que o sequestrador lhe permite vaguear pelo exterior de uma circunscrição, mas nunca dentro dela.
Marcello Dantas, em Rapture.
Não conheço muito de arte; praticamente nada. Por isso, nas exposições em que vou, gosto de encontrar informações que contextualizam a obra e informam sobre o artista. Nem sempre essa necessidade parece clara aos curadores. Com muita frequência, perdidos em palavrório exibicionista, em composições pretensiosas, oclusas, meândricas, destinadas à meia dúzia de intelectuais e críticos que prescindem da explicação, os guias que nos são oferecidos, a nós, leigos, simples mortais que gostam de arte, não ajudam muito. Resignome. Não é fácil escrever textos ao mesmo tempo pictóricos e instrutivos.
Sempre que temos oportunidade, Iêda e eu, vamos às exposições. Ela é mais cognitiva, a palavra bem dita, bem escolhida, um texto atraente ou informativo, sensível ou mordaz, poesia ou prosa, se bem escrito, a cativa. Eu sou mais contemplativo, holístico, deixo-me inundar pela circunstância e tramo correlações. Paradoxalmente ou não, não sei, ela é a mais aguda entre nós, é quem percebe com mais profundidade, clareza e tem mais empatia; eu assingelo. E, nestes dias menos tolhidos, hiato de liberdade em meio à pandemia, a vida cultural renasce em Lisboa. Estrearam duas exposições interessantes; fomos a ambas: Tudo o que eu quero – Artistas Portuguesas de 1900 a 2020, retrospectiva com mais de 200 obras de 40 artistas, todas mulheres, na Fundação Gulbenkian, e Rapture, de Ai Weiwei, na Cordoaria Nacional; nessa última, os textos do curador, Marcello Dantas, são eloquentes e sedutores.
Ai Weiwei, bastante popular aos 64 anos, múltiplo artista, ativista social e dissidente chinês — vive numa quinta no Alentejo, por isso, alentejano também — , inaugurou na Cordoaria Nacional a sua maior exposição de sempre; vai até 28 de novembro. Na sexta, nós passamos por lá. Foram quatro horas para ver as 85 obras, fotos e vídeos expostos. César Brandão, formidável artista, mineiro de Santos Dumont, só um pouco menos conhecido que seu análogo chinês, sugeriu que eu escrevesse sobre a exposição. “O que eu posso acrescentar que não tenha sido dito nos jornais?”, respondi ao amigo. Não pretendia, mas, depois de ter ido, resolvi arriscar.
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A Cordoaria Nacional é um edifício da segunda metade do séc. XVIII, construído na antiga praia da Junqueira, junto ao Tejo, com 353 metros de comprimento e 12 de largura, classificado, em 1991, como Monumento Nacional e que, hoje, abriga grandes eventos. Acolheu exposições como Genesis, de Sebastião Salgado, em 2015, Genius or Vandal, de Banksy, em 2019, e a ARCOlisboa, Feira de Arte Contemporânea, de 2016 a 2019. São 3.120 m² de área útil coberta e contínua; é, provavelmente, em toda a Europa, um dos maiores espaços disponíveis para a realização de exposições. Porém, não deixa de ser curioso notar que a antiga Cordoaria da Junqueira, construída como oficina de cordame, para a produção de cabos de sisal e de algodão, enxárcias brancas e alcatroadas, velas e bandeiras, que equipavam as frotas da marinha portuguesa, a armada que garantia a soberania da coroa sobre as colônias na América, África e Ásia, e onde crianças aprendizes — a partir dos seis anos de idade —, cegos, mendigos, prostitutas e vagabundos em geral, trabalhavam em regime de emprego forçado e presidiários cumpriam penas de trabalho obrigatório, tenha sido o local escolhido para a exposição. Enquanto eu caminho por essa imensa nave e sou impactado pelas obras que vejo, percebo como a origem desse edifício ressalta o ativismo de Weiwei.
Rapture, o nome que o artista deu para a exposição, em inglês, quer dizer arrebatamento, rapto e êxtase também. Começa do lado de fora, na entrada, à frente da Cordoaria: Bicicletas Forever, de 2015, instalação com mil bicicletas, empilhadas em desenho abstrato, dez metros de altura, a receber os espectadores. Dentro, sob a Snake Ceiling, de 2009, serpente de mil mochilas presa ao teto — denúncia da morte de crianças por desabamento de fajuta construção comum às escolas na China —, um mural apresenta o artista. Começa pelo pai, Ai Quing, nascido em 1910, um dos maiores poetas chineses do século passado, contextualiza a China do final dos anos 50, o nascimento do filho, a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, de 66 a 76, o expurgo dos burgueses, intelectuais e opositores, e mostra como esse período foi determinante para a formação de Weiwei: do desterro, que levou a família ao noroeste do país para ser “reeducada pelos camponeses”, aos primeiros anos do artista. E segue, entre 83 e 93, com o período em que ele viveu como imigrante ilegal em Nova York — uma série de fotos ilustra essa época —, o seu regresso à China, a ascensão, o sucesso, o ativismo e a crítica ao regime, a perseguição do governo e, em 2011, a obscura prisão por 81 dias em local desconhecido, tendo suportado mais de 50 interrogatórios, algemado, e, em todos instantes daqueles dias, a intimidade devassada pela presença de dois carcereiros — experiência retratada em S.A.C.R.E.D., de 2011 a 2013, seis esculturas realistas contidas em seis caixas de ferro, vidro e fibra —, a apreensão do passaporte, até, em 2015, a expatriação — Berlim, Lesbos e Montemor-o-Novo —, as várias exposições, vídeos, filmes e as causas sociais e ambientais. Aqui, algumas pistas para a escolha do nome: “o momento transcendente que liga a dimensão terrena e a dimensão espiritual”, “é o rapto, ou sequestro dos nossos direitos e liberdades” e também “o entusiasmo sensorial com o êxtase”.
Ao mesmo tempo em que Ai Weiwei faz oposição e incrimina o governo chinês, provavelmente, é o dissidente com maior projeção mundial e, certamente, é o grande difusor no ocidente da cultura de seu país. Ao mesmo tempo, detrator e construtor da imagem da China no exterior. Em Rapture, não há contradição nessa oposição. Ao contrário, é parte da composição.
Antes da visita, li que a exposição foi dividida nas duas alas da Cordoaria como sendo uma a “dimensão espiritual” ou o “flanco da fantasia” em contraposição à outra, a “dimensão terrena” ou o “flanco da realidade”. Talvez seja. A mim ressaltou mais o contraste e a oposição de materiais, técnicas, volume, peso, transparência, graduação e luz.
Em Pendant – Toilet Paper, recente, o “pingente” é um papel higiênico de 1,60 metro e 10 toneladas, esculpido em mármore português maciço. No início da pandemia, toda a gente viu, o papel higiênico sumiu das prateleiras: açambarcação. Na mesma ala, seguindo em direção ao final, no chão, Tank Print, de 2014, um tapete de lã, de 45×2 metros, confeccionado na China, com a impressão dos padrões das marcas deixadas pelos tanques enviados para esmagar os protestos na praça Tiananmen, há exatos 32 anos, em Pequim;
No teto, uma série de criaturas aladas, bestas mitológicas, grandes, leves e translúcidas, produzidas por artesãos chineses com a tradicional técnica dos papagaios de bambu e papel de seda, suspensas sobre as nossas cabeças, nos acompanham até a instalação Life Cycle, de 2018, criada com a mesma transparência e a delicadeza dos papagaios. Toda de bambu, tem o formato de barco inflável, desses que os refugiados de África e Oriente Médio usam para chegar à Europa. Nela, a tripulação, três dúzias de criaturas míticas de um tradicional texto chinês, Shan Hai Jing, que remonta ao séc. IV a.C, aventuram-se pelo Mediterrâneo em busca de liberdade, pão e paz. Abaixo, na base da instalação, citações de filósofos e escritores — Homero, Santo Agostinho, Kafka, Zadie Smith: “Mas faz um imigrante rir ouvir os medos dos nacionalistas, com medo do contágio, penetração, miscigenação, quando isso é coisa pouca, uma ninharia, comparado ao que o imigrante receia: dissolução, desaparecimento”. No extremo oposto da outra ala, Law of The Journey, de 2016, imenso barco inflável, com três metros de altura, todo em PVC, completamente opaco, espesso, carrega figuras humanas sentadas lado a lado, refugiados na mesma viagem incerta para a Europa.
E ao final, concebida como papel de parede, em preto e branco, Odyssey, de 2016, é inspirada nas primitivas esculturas, cerâmicas e pinturas da Grécia e do Egito, com ilustrações baseadas em imagens atuais, tiradas da Internet e do arquivo pessoal do artista, retrata outra Odisséia, uma em que os protagonistas, diferente de Ulisses, foram abandonados por Atena; destaca as guerras, o êxodo pelo mar e os campos de refugiados. Seu contraponto, volto à parede que fecha a outra extremidade da nave, Odyssey Tile, criada especialmente para essa exposição, é provavelmente, e com razão de sê-lo, a obra mais comentada pela imprensa portuguesa. Reproduz a primeira. Essa, um painel azul e branco, de quatro metros e meio de altura por nove de extensão, com 180 azulejos pintados à mão por artesãos da fábrica-atelier Viúva Lamego, evoca a tradição da azulejaria portuguesa. Impossível não associá-la à Guernica, de Picasso: flagelos daquele e deste tempo. Difícil não pensar na brutalidade humana, na estupidez das guerras, no rudimentar conceito de país e fronteira, na insensatez da concentração de recursos. Penso na debilidade das Nações Unidas. Penso nas opções que tenho feito…
Brainless Figure, deste ano, destaca-se pelo material, a cortiça, e pela técnica. Weiwei foi o modelo para a escultura dessa “figura sem cérebro”, em tamanho natural, algemada à cadeira; só possível com uso de alta tecnologia. E há muitíssimo mais: todos os filmes, muitos vídeos, imensas fotografias, objetos, muitas outras obras e instalações que eu não citei. A exposição é grande, já foi dito. Em conjunto, as obras expressam (também) o colapso do presente: o apagamento dos povos e comunidades tradicionais, seus saberes e cultura, as perseguições políticas, o despotismo, a demagogia, a censura, o êxodo, a luta pela liberdade e sobrevivência, a expansão das desigualdades, a emergência climática, a pandemia. Cada peça exposta, de um pequeno anel às bicicletas à entrada, absolutamente tudo, é política. Se eu fosse escolher uma obra síntese da exposição, aquela que, para mim, melhor captura o sentido da mostra, eu escolheria Tyre, de 2016, que, em oposição à Odyssey Tile, não vi palavra, ninguém falou a respeito, nenhuma menção nem imagem publicada na imprensa. São bóias. Quatro bóias perfeitas, com a leveza que as bóias têm, esculpidas em mármore. Bóias aos desesperados — acontece todos os dias, vimos na tevê muitas vezes, vimos outra vez agora, em maio passado, foi em Ceuta: salva-vidas de mármore maciço.
Rapture extasia, arrebata e sequestra. Ai Weiwei, pode ter se tornado um astro pop, mas sua arte não é, nem de longe, descartável. Sua lucidez, sua câmera, seus olhos, voz e corpo, sua inquietação, estão a nos chacoalhar. E qual, senão esse, o maior legado de um grande artista?
É bom experimentar a vida com a Iêda. Muito do que ela enxerga, eu não vejo. Um tanto da leitura que eu faço, ela não lê. Trocamos impressões. O olhar dela enriquece o meu. Isso, sim, não deu em nenhum jornal.
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Lisboa, 19 de junho de 2021