A urbanização acelerada, as transformações tecnológicas na arquitetura, nas navegações, nas armas e na disseminação da informação com a prensa tipográfica, a emergência do comércio global, berço da burguesia; e mais, a Guerra dos Cem Anos, que faz avançar o conceito de nação, dá impulso às línguas nacionais, empodera reis em detrimento de nobres prelados e senhores feudais, e, por fim, a peste negra, que mata um terço da população europeia, esvazia o campo, traz a fome generalizada e valoriza a mão de obra – golpe mortal no sistema de servidão, base do feudalismo –, são alguns dos fatores que marcam o ocaso Idade Média. Eclode o Renascimento.
Primeiro em Florença e, depois, toda a Europa desponta para essa nova forma de ver e pensar o mundo. Se antes a religião e Deus tinham o monopólio do juízo e da vida cotidiana, com os renascentistas – sem abandonar a fé cristã –, a estética, a cultura e as artes da antiguidade clássica são resgatadas. O humano é exaltado. A razão, as emoções e o prazer (de todo tipo) ganham centralidade. A ciência avança sobre o misticismo. Não aconteceu de repente, assim de uma hora para outra. Foi aos poucos, paulatinamente, e sem que muita gente desse por isso, o obscurantismo medieval foi sendo abandonado. Com o Renascimento a humanidade deu o salto para a Idade Moderna que nos trouxe até à Revolução Francesa.
Às vezes, nalguns dias mais melancólicos desse nosso confinamento, cismo se não estaremos assistindo a maior transformação da humanidade desde o Renascimento. Talvez ainda maior que aquela.
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A Idade Contemporânea, esta em que vivemos, nasceu com a Revolução Francesa. Mas nosso mundo é tão absurdamente diverso daquele que não é razoável pensar que vivemos na mesma era em que viveram Darwin, Marx e D. Pedro II; ou mesmo aquela em que viveram os meus avós. É certo que historiadores do futuro farão um marco a separá-las. Quem sabe definirão como Idade Pós-Moderna aquela em que viveram os nossos ancestrais e a nossa como uma nova Idade Contemporânea? Mas qual seria o marco? Quando dariam por acabada uma e iniciada a outra? As teorias são muitas, eu sei. Enquanto eles não proclamam a data, proclamo eu: foi em agosto de 1959, com o lançamento do álbum Kind of Blue do Miles Davis. Não digo isso porque ontem foi o dia do jazz. Não. Digo porque é impossível ficar indiferente a esse álbum que, nas minhas cismas, revoluciona tudo e arrasta com ele uma série de transformações no comportamento social, na cultura, na tecnologia, na política e na economia intergaláctica.
Marcar datas assim não é pouca coisa. Há que considerar vários eventos para não errar a mão. Alguém poderá dizer que a nossa era nasceu das cinzas da Segunda Guerra Mundial. É uma boa teoria, mas sem poesia alguma: em agosto de 1945 os Estados Unidos despejam as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki; marca o uso de uma nova tecnologia que terá consequências decisivas no futuro político e econômico em todo o mundo. Outros indicarão a queda do muro de Berlim, em novembro de 1989, como o fato que melhor assinala a virada. Mas eu insisto naquele álbum daquele trompetista afro-americano, manifesto, cheio de personalidade, cuja música anseia por e irradia transformação. Ele não estava só, eu sei, os fundadores da pop art, a geração beat e, a seguir, as grandes lendas do rock. São os artistas a antever o porvir.
A partir daí, em avalanche, pronunciam e deixam os seus legados os movimentos feminista, black power, hippie, LGBT, ambientalista, ganham força as manifestações pelos direitos civis, pelas causas das minorias, pela paz e pela liberdade. A sociedade está em transformação. Em paralelo, ampliam-se as relações econômicas internacionais. A Ásia floresce e, na sequência, a China ascenderá. Colapsa a União Soviética, é a falência da distopia comunista. A guerra fria, resquício da Segunda Guerra Mundial, tem fim. Sem a rivalidade entre os grandes blocos políticos, aprofunda a integração econômica e cultural entre as nações.
Eu estava em Stuttgart, na Alemanha, no verão de 1988. Gorbatchov já havia começado as reformas democráticas e o exército soviético deixava o Afeganistão. Na Europa, ainda dividida, as pessoas temiam viver os horrores de outra guerra mundial e respiravam aliviadas com a política do líder soviético. Visto como pacificador, grande herói para aquela geração, foi cotidianamente homenageado: rebatizada, a vodka virou Gorbatchov e todos os dias nos embriagávamos dele.
Uns tantos anos depois, eu trabalhava em São Paulo quando a internet comercial foi lançada. Houve um curso na empresa para nos ensinar a navegá-la. Desde então, o digital revoluciona as comunicações, destrói indústrias e cria novas. Novos tempos. Aprofunda a globalização econômica, cultural e tecnológica. Expande a riqueza global. A renda dos mais pobres cresce consideravelmente, morrem menos crianças, menos gente sente fome, aumenta a expectativa de vida, e também aumenta e fica mais evidente a desigualdade dentro e entre os países. O planeta está absolutamente interdependente. Conhecemos a insegurança do terrorismo global, do terrorismo cibernético e do terrorismo da desinformação. A humanidade não está livre das guerras. Um pouco por todo lado os homens continuam se matando. As causas são as de sempre.
Você e eu somos testemunhas da crise desencadeada entre 2007 e 2009. Muitos perderam o que haviam conquistado. Outra vez as manifestações. Os motivos, não menos dignos que aqueles de há quarenta anos, parecem menos evidentes. Começa em África, Tunísia, Egito e Argélia, segue para o Oriente Médio, Líbia e Síria, é a Primavera Árabe. Quando atravessa o mediterrâneo, na Espanha, é o Movimento dos Indignados, que depois se espalha pela Europa e chega até Israel. Em várias cidades norte-americanas é o Occupy Wall Street. No Brasil são as Jornadas de Junho de 2013 e, no ano seguinte, filha da primeira, o Não Vai Ter Copa. Finalmente, em 2019, chega ao Chile com o movimento estudantil. Não é certo que pare por aí. Em comum, denunciam a opressão, as injustiças, as desigualdades e o descaso das autoridades. Revoltados, com raiva, exigem mudanças. Seus alvos são intangíveis. Miram no capitalismo, no mercado, na globalização, no sistema e nas elites. Geram instabilidade e derrubam governos.
Na vaga aberta pelas manifestações, no extremo ideológico, populistas semeiam a insensatez e dela se alimentam. O fruto é de outro pé, mas o adubo o mesmo: a indignação, a raiva e o desejo de mudança. Desta vez miram o estrangeiro, o desemprego, a insegurança, a desordem e, mais uma vez, a globalização e o sistema. Propõem soluções simples. Idealizam um futuro fantástico e glorioso como num passado que nunca existiu. Oferecem esperança (vã). Cismo: é o grito dos afogados. Gritam como deve ter gritado o que sobrou da aristocracia feudal ao final do século XV.
A ciência avança. A tecnologia suplanta o trabalho e aproxima os continentes. A população (ainda) cresce, as necessidades são maiores e o meio ambiente dá sinais de esgotamento. A inteligência artificial progride rápido, as pesquisas em biotecnologia também. Imensas questões éticas estão por resolver; nem todo mundo se dá por isso.
Do nada, o surto. Somos cúmplices de uma pandemia que prende e mata. Uma doença desconhecida que a todos ameaça. Há crise. Há perda. Há oportunidade. É o ocaso de uma era; cismo. Que valores do passado a gente precisa, quer, e vai resgatar? Que salto a humanidade dará depois desse novo renascimento? Eu não arrisco dizer. Sei que a história não se repete, deixa referências. Aqui e agora, neste final de tarde, enquanto vejo as andorinhas brincarem no céu de Lisboa, neste dia melancólico de confinamento, cismo que se o passado não tem volta e se o que foi há dois meses não será mais, melhor eu não me perder em nostalgia e aproveitar os dias em casa para olhar adiante e me dispor ao futuro.
*Osvaldo reside em Lisboa e escreve para os blogs: Flerte, sobre lugares e pessoas e Se conselho fosse bom…, sobre vida corporativa e carreira. Atuou por 25 anos no mercado de informações para marketing e risco de crédito, tendo sido presidente, diretor comercial e diretor de operações da Equifax do Brasil. Foi empresário, sócio das empresas mapaBRASIL, Braspop Corretora e Motirô e co-realizador do DMC Latam – Data Management Conference. Foi diretor da DAMA do Brasil e do Instituto Brasileiro de Database Marketing – IDBM e conselheiro da Associação Brasileira de Marketing Direto – ABEMD, dos Doutores da Alegria e, na Fecomercio SP, membro do Conselho de Criatividade e Inovação.