Saga e perrengues no Norte da Itália – por Osvaldo Alvarenga*

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Tirano é uma vila raiana da Lombardia, muito ao norte da Itália, quase Suíça, ao pé dos alpes. O povoado, velho como a Europa, hoje com menos de dez mil habitantes, desenvolveu-se às margens do rio Adda, a 441 metros do nível do mar, em um vale fértil, cercado por montanhas altíssimas, de onde vê-se, mais à distância e por todos os lados, os picos sempre nevados com até quatro mil metros de altura. A cidade é dividida em duas: a parte, digamos, moderna, onde ficam as estações – são duas – e a mais antiga, medieval, já bastante alterada, onde fica o Santuário da Madonna di Tirano: belíssima igreja entre renascentista e barroca, do séc XVI. Pena que, condicionados à desordem nos horários dos trens, tivemos pouco tempo para conhecê-la. Quando chegamos, em horas de missa, e missa nós respeitamos, pudemos ver muito pouco da nave. Pego de surpresa, restou-me observar o padre, menos atento à Ave Maria, mais ao microfone que ora funcionava, ora não. Além do santuário, estão preservados troços da antiga muralha e dos portões Poschiavina, Bormina e Milanese, construções do séc XV, a proteger a aldeia dos invasores. Não os vimos. De novo, culpo a Trenitalia e a Trenord, as empresas ferroviárias que nos levaram até lá, desde Rovereto.

Rovereto é também uma vila muito ao norte da Itália, essa da Trentino-Alto Ádige. De carro, fica a 170 km de Tirano; distância que pode ser percorrida em pouco mais de três horas. Receoso do gelo nas estradas, eu não quis dirigir. Aliás, nem nos ocorreu alugar um carro. Decidimos fazer de trem o percurso entre as duas vilas. Por esta opção, em tese, o tempo de viagem dobra. É preciso voltar até Milão, trocar de trem e rumar ao norte novamente. Mas quem se importa com isso quando, do nível mais alto em que vamos, das janelas descortinam-se montanhas, vales, rios e lagos, socalcos cobertos de vinhas e macieiras – desfolhadas nesta época do ano – os campos preparados para as hortaliças, pequenas vilas cor de pedra, castelos, mosteiros e conventos isolados nos montes. A bela paisagem embala a viagem. Feitas as contas, acordando cedo, estaríamos em Tirano no início da tarde, com luz suficiente para correr toda a vila antes de anoitecer.

No dia em que chegamos à Itália, no deslocamento entre Milão e Rovereto, como era final de semana, parte da ferrovia estava fechada para manutenção. Avisados por um amigo, viajamos preparados para, em certo trecho, trocar o trem pelo ônibus e pegar outro trem mais adiante. Um trecho curto, pouco mais de 35 minutos entre as duas estações. De ônibus um pouco mais. Tudo bem. 

Tudo bem se estivesse bem. Não estava. A viagem correu mal. Houve longas paradas em estações secundárias. O trem atrasou. Em Bréscia, o caos para tomar os ônibus providenciados pela Trenitalia: uma multidão perdida e nervosa, gente com malas, com crianças – garoava, fazia frio – e nenhuma organização. Três ou quatro ônibus, espalhados à frente da estação sem nenhum critério. Não havia fila entre os passageiros, nem ordem de partida dos coletivos. As pessoas corriam para as portas, um bolo de gente e tralhas, e esperavam que os motoristas abrissem as portas. Horas depois, chegamos aflitos a Verona. Pelo atraso, perderíamos a conexão, o último trem da noite para Bolzano com parada em Rovereto.

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Não perdemos o trem. Simplesmente, estava cancelado. Só havia essa informação no quadro de partidas. Sem ninguém que orientasse, corremos a estação em busca de ajuda. Encontramos um funcionário da companhia, mau humorado, talvez porque fosse sempre assim, talvez pelo serão, talvez porque não tivesse paciência com turistas… De arranco informou que havia um ônibus da empresa e indicou o caminho: Vai qui ai taxi – mostrou com a mão a saída –, poi vai a sinistra a e uno. A Iêda insistiu, queria saber o que era “e uno”; já eu, com medo de perder a boleia, corri lá para fora. Chovia fino. Fazia uns quatro graus. Vi os táxis e, atrás deles (não à esquerda), as plataformas dos ônibus. A passos largos, fui até lá: A1, A2, B1, B2, C1, C2, D1 e D2. Cadê o E? Procurei. Não havia. Havia pedintes, havia gente mal encarada, havia polícia. A Iêda, já fora da estação, perguntava-me com voz alterada: Achou? Eu fazia sinal de que não. Ela correu até um policial para perguntar. O homem vigiava um suspeito dentro da viatura. Chispou-a de lá. Ela foi aos táxis. Afobado, eu me aproximei. O taxista não entendeu o nosso idioma. Por sorte, uma moça chegou e fez-lhe a mesma pergunta. Estava perdida também. Italiana que falava inglês, raro por ali – àquela hora. Caminhamos juntos à esquerda, não havia ônibus nem plataforma. Num poste, um pequeno cartaz impresso numa folha A4 dentro de um saco plástico transparente: E1- Bolzano. Encontramos o ponto. Mas já passava da hora prevista para a partida. Será que o ônibus já foi? A italiana achava que não. Ficamos ali parados; na chuva que ia e vinha. Mais pessoas chegaram – retardatários dos ônibus de Bréscia; iam para Rovereto, Trento e Bolzano. Conclusão, chegamos tarde ao hotel, famintos e cansados do dia todo em viagem. Lá encontramos amigos queridos, tomamos uma cerveja excepcional, a conversa fluiu e o dissabor cessou.

Quatro dias depois, idas e vindas sem problemas entre Rovereto e Verona, Rovereto e Trento e Rovereto e Bolzano, perdemos a má impressão da chegada, e lá estávamos nós, de pé na estação, antes das nove da manhã, dois graus de temperatura, esperando – os primeiros raios de sol refletiam no branco dos picos mais altos. Pontualmente às 9h04 chegou o trem, e nós, confiantes, embarcamos. Às 11h45 estaríamos na estação central de Milão e, lá, às 12h20 tomaríamos o trem para Tirano. Dez paradas depois, chegaríamos ao nosso destino, às 14h33. Tudo corria bem até que, em Romano di Lombardia, o trem parou. Parou e permaneceu tempo demais parado. Até que, pelo alto-falante, exclusivamente em italiano, foi-nos dito que deveríamos descer. Nenhuma outra informação. Todos do lado de fora. Um dia bonito de céu muito azul, as pessoas amontoavam-se ao sol. Informações nenhumas. Só as do painel da estação que listava as próximas partidas. Outro trem para Milão somente em duas horas. Perderíamos a conexão programada, mas, pela internet, descobrimos que havia outra logo em seguida: perderíamos os restaurantes abertos para o almoço, mas não a tarde em Tirano. Juntamo-nos aos demais ao sol e esperamos.

Em seguida, no painel, surgiram os cancelamentos. Todas as partidas. E nenhuma notícia adicional. As pessoas desassossegaram-se. Recomeçou a agitação. A Iêda foi para um lado, eu para outro, buscávamos informações. Parou um ônibus a certa distância da estação. Correria. A Iêda foi até lá, mas eu estava na plataforma tentando entender o que dizia um funcionário da Trenord que, mal apareceu, foi cercado pela multidão. A roda era grande, eu estava distante e ele falava em italiano. Entendi que alguém havia se suicidado. Uns entenderam que fora no trem, outros que fora na linha. Todos entendemos que seria necessário esperar a polícia fazer seu trabalho para os trens voltarem a circular. Eu corri atrás do homem. Perguntei, e ele respondeu em inglês, mas de arranco: haveria um ônibus para transportar os passageiros até Bergamo e, de lá, o trem para Milão. Um ônibus para centenas de pessoas?; quis saber. Ele não respondeu, tinha pressa. Apontou para a rua. Fez sinal com a mão para eu ir rápido. Fui e vi a multidão à porta do ônibus. Empurra-empurra, confusão. A Iêda voltava de lá, do meio da barafunda. Disse a ela o que ouvira do funcionário. Ela me disse que aquele ônibus ia para Treviglio, não para Bergamo. Ficamos atentos: outro ônibus há de vir. Não veio. As pessoas vinham nos perguntar coisas (talvez por parecermos tranquilos, portanto, bem informados). Mais de hora parados à espera em Romano sem meios de seguir viagem.

Decidi procurar novamente o funcionário. Fui ao café onde o vi pela última vez. Não estava. Na plataforma, entre a multidão, também não. Invadi o trem vazio e caminhei até a locomotiva. Ele estava lá com o, suponho, maquinista. Perguntei, paciente e com educação, ele repetiu a primeira informação. Insisti que não apareceu nenhum transporte para Bergamo, somente um único ônibus para Treviglio. Sem paciência, ele me explicou que é a mesma coisa, a estação de Treviglio fica em Bergamo. Puta que os pariu! Como eu poderia saber? Ele respondeu com um gesto: encolheu os ombros, virou as palmas das mãos para cima, apertou os lábios, entortou a boca de um lado e fechou os olhos, como quem diz: paciência, azar o seu! Por fim, enternecido, consultou alguém pelo walkie talkie e me disse que mais um ônibus estava a caminho, que eu voltasse rápido para a rua se não quisesse perdê-lo. Corri para fora. Fui até a Iêda e contei o que descobri. No ponto onde o primeiro ônibus havia parado o tumulto continuava. Algum tempo depois, o transporte chegou, foi um salve-se quem puder. Nós nos salvamos (viajar com mochila leve, sem malas, em horas como essa faz toda a diferença). A turba ficou para trás.

Dentro do ônibus, durante a viagem, consultamos pela internet os horários dos trens para Milão. Se a viagem durasse menos de meia hora pegaríamos o próximo. Senão, um trem regional, mais lento, dez minutos depois. Consultamos o Google: 22 minutos até Treviglio. Chegaremos a tempo. O motorista era lento: acelera, moço! Não acelerou. Gastamos exatos 30 minutos. Descemos desabalados do carro. Tive de esperar o motorista-sem-pressa sair e abrir o maleiro. A mochila estava coberta por malas, fui limpando o caminho, peguei minha bagagem e corri para me encontrar com a Iêda que seguia à frente. Quando a encontrei, ela já sabia em qual plataforma pegaríamos o trem; que estava 10 minutos atrasado (ainda bem). Depois a sinalização mudou: atrasaria 15 minutos, e então 20, por fim, anunciaram, primeiro em italiano e a seguir em inglês, que o trem chegaria com meia hora de atraso. Assim já é demais, vamos perder a conexão em Milão. Perdemos. Chegamos em Milão com folga para um lanche enquanto esperávamos o próximo trem que, afinal, sairia às 17h20. Nossa previsão de chegada em Tirano saltou para às 20h02, três horas depois do pôr do sol.

Por termos lido nos guias de viagens, sabíamos que a ferrovia contornava o Lago di Como, por isso, posicionamo-nos do lado esquerdo do trem e apreciamos a paisagem que nos fez esquecer as agruras do dia. A viagem corria sem sobressalto até que… na penúltima estação, em Sondrio, capital da província, o trem parou de vez. Estava cancelado o trecho até Tirano. Deveríamos descer e pegar um ônibus na rodoviária – ou quase isso – do outro lado da linha. Claro que a informação chegou incompleta. Claro que somente em italiano. Claro que a gente teve de se virar para achar o lugar: colamo-nos em dois italianos e os seguimos de perto. Eles também não entenderam bem a mensagem. Demos uma volta desnecessária, ainda assim deu tempo de apanhar o ônibus e chegar ao nosso destino; lá pelas oito e meia da noite.

Perdido todo o dia numa viagem de doze horas, quando deveria ter durado pouco mais de seis, procuramos o nosso anfitrião num restaurante próximo às estações. Com ele, italófono, fomos até ao apartamento alugado por duas noites, despejamos as nossas tralhas e saímos, no frio de menos qualquer coisa, para jantar. A pizza, do restaurante indicado por ele, estava excelente. O vinho também não era mau. Ainda sobrou tempo para irmos à estação dos trens suíços e comprar a passagem para St. Moritz, na manhã seguinte.

Fomos a Tirano para comemorar o aniversário da Iêda. Ela queria fazer o trecho do Bernina Express que liga Tirano a St. Moritz – um caminho lindíssimo, viagem imperdível, tema de outra crônica.

Interessante Tirano, apesar de mínima e apesar do frio, a cidade mantinha alguma vida em plena quarta-feira à noite. Estrangeiros, acho, somente nós. Eram italianos que ocupavam os poucos restaurantes abertos. E, diferente das aldeias no interior de Portugal, onde quase só há idosos e alguma criança, ali havia bastantes homens e mulheres maduros, e jovens também. Gente simpática, que nos deixou boa impressão do lugar.

No dia seguinte, logo cedo, pegamos o trem suiço, vermelhinho, vazio, e fizemos o nosso passeio: ida e volta no mesmo dia; sem atrasos. Regressamos a Tirano ao cair da noite. Corremos para o Santuário e, sem querer, pegamos a missa. Mais tarde, um jantar nada especial em outro restaurante (devíamos ter voltado às pizzas), e fomos dormir contentes e só um pouquinho bêbados.

Finalmente, no dia do aniversário da Iedinha, marchamos até a estação para pegarmos o trem de volta para Milão. Dez minutos antes do horário previsto, nos alto-falantes, exclusivamente em italiano, o aviso de que não haveria trem. Um ônibus nos esperava no terminal. Só que não. Nosso tormento com os trens no Norte da Itália parecia nunca ter fim. Na bilheteria da parada de ônibus, o stronzo do funcionário, xenófobo num país e numa aldeia que dependem do turismo, negou-se a dar informações. Disse, naturalmente que em italiano, não saber de nada, que era problema da companhia ferroviária, que eu voltasse à estação para me informar porque não havia previsão de ônibus para Sondrio naquele horário. Um senhor, simpático, que escutava a conversa atrás de mim, na fila, num misto de resignação e orgulho, resumiu: È l’Italia! Foi ele quem, mais tarde, me avisou que havia estacionado um ônibus, escondido atrás de outros, fora do pátio. Fui conferir, era o nosso.

A Iêda voltou à estação para avisar às pessoas que deviam estar na mesma situação. Regressou trazendo companhia e me disse ter reconhecido à distância um rapaz que ela vira antes à espera do trem, mas que não pôde alcançá-lo. Pronto para sair, o ônibus ainda estava vazio. Tentei falar ao motorista que ainda havia gente perdida entre a estação e a parada, que não havia sinalização e que o ônibus estava escondido, que era preciso avisar às pessoas, que esperasse um pouco mais. Ele não entendeu ou não quis entender, disse qualquer coisa como lo so, lo so, e ficou por isso mesmo. Eu desci e fui procurar o tal rapaz. Encontrei dois. Com alguma dificuldade, convenci-os a me seguirem. O motorista impaciente buzinava e, quando me viu acenou como quem diz: já vou embora! Corremos. Embarcamos todos. Em Sondrio, um dos rapazes veio me agradecer. O outro – aquele que a Iêda vira perdido – não. Passou por mim sem dizer palavra. Eu que nada esperava, fiquei feliz com a gentileza daquele que me procurou.

Embarcamos sem atraso em Sondrio. De novo, apreciamos a beleza do Lago di Como e do seu entorno. Desta vez, o dia estava claro e ensolarado. Chegamos serenos em Milão, e na hora prevista.

Achou longa essa saga? Imagina nós.

***
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