Caminhar pelas ruas de San Daniele del Friuli é como ouvir uma sinfonia de aromas, história e tradição. Localizada no coração do Friuli Venezia Giulia, essa pequena cidade italiana é conhecida mundialmente por seu produto mais nobre: o Prosciutto di San Daniele DOP.
*Por Waleska Schumacher – Haia, Países Baixos
Mas o que torna esse presunto cru tão especial não é apenas seu sabor inconfundível, mas o modo como ele traduz a essência de seu território.
Para quem busca destinos autênticos na Itália, experiências sensoriais únicas ou conexões profundas com a história e o terroir de um lugar, a visita a San Daniele é essencial. Este relato mistura memória pessoal, investigação e encantamento — servindo como um guia sensorial e emocional sobre o que torna esse produto tão especial.
A tradição que atravessa séculos
A arte de curar presunto em San Daniele tem raízes milenares. Povos celtas já utilizavam técnicas rudimentares para conservar carne suína. Mais tarde, com os romanos, essa prática foi aperfeiçoada, e há registros históricos mencionando a qualidade da carne da região já no século I d.C.
Em 1961, os produtores fundaram o Consorzio del Prosciutto di San Daniele, que regula, protege e promove a produção local. Desde 1996, o produto ostenta o selo DOP da União Europeia, garantindo que ele só possa ser curado dentro da comuna de San Daniele, com regras específicas de origem, matéria-prima e processo artesanal.
O terroir de San Daniele: onde o ar molda o sabor
O segredo do Prosciutto di San Daniele está no seu terroir, um conjunto de fatores naturais e humanos. San Daniele está situada entre os Alpes Carníacos e o Mar Adriático, às margens do rio Tagliamento. Essas correntes de ar criam um microclima ideal para a cura da carne — lenta, equilibrada e sem aditivos — resultando num presunto delicado, levemente adocicado e com notas amanteigadas, graças à maturação que dura mais de 13 meses.
Uma tábua, muitas nuances
Em San Daniele, fui à tradicional La Casa del Prosciutto, no centro histórico, onde pedi uma tábua composta apenas por prosciutto cru, cortado na hora, com fatias extraídas de diferentes partes do pernil. Foi nesse momento que minha percepção mudou.
Cada fatia apresentava um perfil distinto: da parte mais próxima à coxa, com textura macia e sabor mais delicado, até a região da pata, onde a carne se torna mais firme, concentrada e aromática. A degustação revelou o quanto o mesmo presunto pode se transformar em diferentes experiências, apenas por sua anatomia.
Um aprendizado sensorial riquíssimo, que despertou ainda mais meu respeito por esse produto.

A memória que fica
De volta ao Friuli, compartilhei essa experiência com minha amiga italiana Monica Rossi, residente na região. Quando mencionei que havia visitado San Daniele, ela respondeu com simplicidade e precisão:
“Podes até comprar o presunto e levar para casa, mas jamais será o mesmo que degustá-lo ali, cortado na hora.”
E ela tinha razão. Ainda bem que deixei aquele momento intacto na memória — não como um souvenir, mas como uma experiência completa.
Curiosidade regional: o queijo Montasio
Outro tesouro da região é o Montasio DOP, queijo de origem protegida elaborado nos Alpes Giulie desde o século XIII. Produzido com leite de vacas locais alimentadas em pasto alpino, o Montasio passa por várias fases de maturação: fresco, mezzano, stagionato e stravecchio. Seu sabor vai de delicado e cremoso a complexo e frutado — sendo o par perfeito para o prosciutto em uma tábua friulana.
Fonte: montasio.com

A visita técnica na Dok Dall’Ava
Na Dok Dall’Ava, visitei o museu e as caves de cura, onde os painéis informativos apresentaram o processo técnico e artesanal em detalhes. Descobri, por exemplo, que:
- Cada pernil recebe 1 dia de sal por quilo de carne.
- Todos são marcados com a data exata de início da cura.
- A pressão é feita naturalmente, sem uso de máquinas.
- A cura ocorre em ambientes com microflora própria de décadas.
- O corte e a aplicação do stucco são feitos manualmente.
- Os suínos são italianos, alimentados com soro de leite.
Esses detalhes reforçam como o tempo, o clima e o cuidado humano formam a essência do Prosciutto di San Daniele.

Raças raras e excelência artesanal
A Dall’Ava também desenvolve presuntos com raças especiais:
- PATADOK: feito com porco ibérico espanhol, curado à moda de San Daniele — sem nitratos, apenas sal da Puglia, curado por 24 meses.
- L’HUNDOK: com o porco húngaro Mangalica, raça rústica e de carne untuosa, criada em liberdade.
- Suíno Nero dei Nebrodi: originário da Sicília, criado em pastoreio livre, abatido jovem. Uma carne escura, intensa e raríssima.

A Banca del Prosciutto: o prosciutto como patrimônio cultural da Europa
A arte de prosciugar (secar com sal) é uma das mais antigas formas de conservação de alimentos. Inspirada nessa tradição, nasce a Banca del Prosciutto, uma instituição criada para reunir os principais presuntos da Europa — da França, Espanha, área balcânica e Itália — em um só espaço. O Friuli, por sua posição geográfica e herança cultural, é visto como o centro simbólico da arte prosciuttaia.
Dedicada aos prosciuttai que trabalham com qualidade, transparência e paixão, a instituição valoriza não apenas o consumo, mas o entendimento:
“Raccontare ciò che fanno, e fare ciò che raccontano.”
(Contar o que fazem, e fazer o que contam.)
Porque o presunto — como eles dizem — não é um simples salume.
O Prosciutto é o Prosciutto!

Epílogo: os porquinhos sorridentes
Na saída da loja, deparei-me com uma escultura bem-humorada de porquinhos sorridentes — quase como guardiões do sabor. Eles pareciam saber que, por trás de cada fatia finamente cortada, existe um universo de tradição, cuidado e terroir.
Seja no silêncio das câmaras de maturação ou no burburinho leve das mesas ao ar livre, San Daniele ensina uma lição: o tempo, quando bem cuidado, transforma o simples em extraordinário. E é isso que sentimos ao provar uma fatia fina de prosciutto cortada à mão: o gosto da história maturada com paciência.
