Memórias de Portugal e da Argélia

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Bayard Do Coutto Boiteux*

A pandemia é um período de muita reflexão e lembranças para mim. Em alguns momentos, paro para pensar em dois países que fizeram parte de minha formação afetiva, acadêmica e ideológica. Os anos que passei em Portugal e na Argélia, durante o exílio de meus pais marcaram minha vida para sempre e me fizeram também um pouco argelino, português, além de brasileiro, de origem suíça. Formaram o que hoje eu chamo de cidadão do mundo, que é o que me caracteriza e me mostra os caminhos que devo seguir.

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Quando falo da Argélia, logo me lembro do Centre Familial de Ben Aknoun, um centro que nos acolheu na chegada ao país e o Liceu Descartes, onde estudei. O Liceu era um exemplo da globalização: eram tantas nacionalidades, tantas línguas, tantos sotaques que levei um banho de cultura nunca visto. Foi na Argélia que tive contato com o mundo islâmico, que tanto me encanta por suas peculiaridades e sua forma de expressar uma crença, às vezes desvirtuada por ortodoxos, como acontece em todas as religiões. Ali nasceu uma nova família formada pelos filhos dos exilados e seus pais. Entendi as diferenças culturais participando de casamentos, fazendo o Ramadão por alguns dias, aprendendo o árabe, viajando pelo deserto, com lembranças nunca esquecidas de Bou Saada e Ghardhaia. Argel é conhecida como “Alger,la blanche” pelo branco de seus prédios que marcam nossas memórias afetivas. Como foi bom ser ator e participar da companhia de teatro com o Lula e a Nena Arraes. Era divertido mas sobretudo importante para nossa formação acadêmica, com peças de Brecht e poemas de Neruda e Lorca.

Um de meus documentos escolares nos tempos em Argélia (arquivo pessoal)

Com o 25 de abril, a famosa Revolução dos Cravos, em Portugal, deixamos a tão solidária Argélia e fomos morar em Vila Nova de Gaia, num condomínio novinho, chamado Mariani. Meu pai trabalhava na Faculdade de Economia do Porto, onde até hoje tem uma sala em sua homenagem. O Liceu de Gaia foi palco de uma nova experiência, pois mesmo falando a mesma língua, as diferenças se faziam presentes: chamar o professor de Sr Doutor, ser bastante formal no relacionamento mas descobrir uma gente tão boa, tão amiga que até hoje faz parte do meu ciírculo de amizades. Deveria ter ficado por lá e me casado com a namorada Fátima mas o Propedêutico, uma modalidade no ensino à época que nos obrigava a ficar parado um ano, fez com que meus pais me mandassem de volta para o Brasil e morei na Delgado de Carvalho, na casa de minhas tias, até que a Abertura democrática acontecesse de fato e meus pais retornassem ao Brasil.

Nos últimos anos voltei uma única vez na Argélia. Fiquei na casa dos Caubarrere e pude revisitar rapidamente meu segundo país, começando no vôo da Air Algérie. Visitei todo meu passado e pude sentir um gostinho de “quero mais”, que vai acontecer assim que a pandemia acabar e a vacina chegar. Para Portugal, tenho ido quase que anualmente e já voltei inclusive a participar da festa de São João, com seus machadinhos. Conheci lugares incríveis como Piodão e tive contato com amigos da Vida, irmãos postiços, como o Jorge, o Paulo, o Carlos, para citar apenas alguns. Conheci um Portugal diferente, agora com muitos imigrantes brasileiros mas também sempre sorridente e generoso.

A nostalgia e as saudades me tiraram do confinamento para meu passeio semanal e me levaram na semana passada para a Tijuca, onde tudo começou.

A nostalgia e as saudades me tiraram do confinamento para meu passeio semanal e me levaram na semana passada para a Tijuca, onde tudo começou. Parei na porta do Edifício Almirante Boiteux, na Delgado de Carvalho, onde a porteira sabia que eu era o Bayarzinho, mesmo com a máscara. Olhei para o apartamento 102 e me lembrei das festas, dos eventos, dos primos e da família enorme. Passei na rua Araujo Penna, onde morava meu Tio Ruyter, médico que fez meu parto e de quase todos meus primos. Nasci na Casa de Portugal e cursei Direito, na Estácio. Não poderia deixar de passar na Escola  Francisco Cabrita, onde fiz parte do primeiro grau e meu primo Luciano, me lembrou que seu pai Tio Colbert lhe ensinou o hino da Escola, que ele gentilmente nos forneceu a letra. A tijuca é um misto de alegria e tristeza. Fui atropelado e fiquei em coma e papai pode sair da prisão para me visitar. Uma vez nossa casa foi invadida na época da Ditadura e quiseram jogar uma bomba no meu quarto, mas o tio Ruyter impediu. No entanto, ali nasceu uma nova família também misturando as várias famílias que moravam na Delgado e dali surgiram vários casamentos, alguns que perduram até hoje.

A Tijuca se encontra com Argel e com o Porto. Foi o caminho da Kombi da Tia Solange que nos levou para o aeroporto para embarcar para o novo mundo do exílio, que me deu tantas possibilidades de amor ao próximo, de entendimento da diversidade e de lutas contínuas.


 

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