Existe é homem humano.
Travessia.
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Travessia
Desterro é obrigação. Exílio é sobrevivência. Desterra-se quem não tem opção. Exila-se quem foge do medo, da fome, da obediência ou do descontentamento. Há vez que o inesperado falta. Há vez que o sonho excede. Migrar é fado: desventura e êxito.
Quem emigra terá sempre os pés em duas canoas: o país em que foi viver e a pátria que deixou. Pesada sina. Será sempre estrangeiro, com a graça ou a maldição de ver tudo por outro ângulo, de fazer de outro jeito, de trazer um espírito diferente, de tomar por errado o estranho e condenar ou de ser testemunha e compreender. Por toda a vida, desenraizamento. Haverá sempre de perseguir os cheiros, os gostos, as cores e as pronúncias da terra natal. Fazer planos de voltar, sonhar com o aninho da antiga casa, na rua e no bairro que foi seu. Desejar o regaço da terra mãe. Viver eternamente em dois mundos.
Arrojados os que fazem a travessia. Partir é grande feito. Aos que cruzam, incertezas, angústias e inquietações. Afortunados os que chegam. Renitentes os que permanecem: há, para tantos, vida melhor além.
Quem imigra tem sempre os pés em duas canoas: o país em que vive e a pátria distante. Difícil equilíbrio. Por defesa, se engana agarrado nalguma fresta, sempre que pode, horas sem fim, tenta e tenta acompanhar o ordinário da realidade que deixou. Bem o sabe, o passado não retorna. O tempo trata de tudo mudar. Sua terra já não é a mesma nem as pessoas permanecem iguais depois da despedida. A conversa à distância quase em nada diminui a solidão nem as imagens abrandam as saudades que sente de tudo. Ficam os resilientes e perseverantes. Ficam também aqueles sem caminho de volta, os que perderam qualquer possibilidade de regresso, os desterrados.
Travessia é castigo e recompensa. O castigo, todo exilado experimenta um pouco ou por completo: sentir-se alienígena, inadequado, deslocado, desvinculado, excluído, sem reputação nem prestígio, sem ter com quem contar, sem ter em que se agarrar. A recompensa está no novo que se apresenta, na liberdade para reescrever a própria história, na maior independência, na autonomia para recriar-se sem amarras, sem ter a quem dar satisfação, sem ter de renunciar aos anseios e às oportunidades que enxerga; é tanto aprender, é transformar-se, é avessar-se ao virar-se para fora.
Ver partir é perder o chão. É impotência e dor. Na paisagem que é a mesma, os sons, cheiros, gostos e as cores de sempre, como são de sempre os compromissos… e o vazio, a falta. Vago. Luto. Aceitar, aquiescer, manter-se inteiro, seguir em frente e transpor. A travessia de quem fica é refazer-se por completo na ausência de quem partiu. Há esperança também. Há vez que ficar é pisar terra firme.
Quem volta, depois de imigrar, tem sempre os pés em duas canoas: o país natal pouco exato e a cultura que deixou menos exótica. Entre frustrado por impreciso fracasso e envaidecido por relativo sucesso, o retornado projeta. A sua angústia não tem fim. Regressa diferente, modificado, aculturado, desadaptado, capturado por outras referências. Torna estrangeiro. Infinito. Travessia.