Por Paulo Atzingen*
“Quando se sobe uma montanha o coração pode imitar a bateria de uma escola de samba. Se lá em cima a vista for espetacular e você se emocionar, então sua escola de samba foi campeã”. (P. Atzingen)
O primeiro dia de caminhada no Parque Nacional da Serra dos Órgãos (Parnaso) serviu de cara para me dar uma lição: se quer enfrentar uma montanha venha preparado não só com equipamentos, mas com o coração porque irá se emocionar. Uma montanha e uma vista bonita servem para congelar na memória e fixar na retina para sempre aquelas paisagens magníficas que só avistamos quando estamos sentados, da janela do avião. Na montanha as paisagens são fixas.
É evidente que um coração forte é importante, mas é fundamental também um calçado com cano longo para proteger o tornozelo, um bastão para apoiar, equilibrar e diminuir o impacto do peso do corpo, cantis com tamanhos suficientes para o armazenamento de água e alimentos próprios para suprir o desgaste físico, itens indispensáveis do bom trilheiro. Sem falar no protetor solar e, em alguns casos, um repelente para afugentar os borrachudos e mutucas.
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Cachoeira e Caverna do Getúlio
Começamos nossa caminhada por Petrópolis e o planejado era seguir uma hora e meia até a Cachoeira Véu de Noiva e de lá, mais seis horas e meia para o abrigo do Açu, um dos corações da Serra dos Órgãos. Esse tempo e essas distâncias quando lidos, falados e ouvidos são inofensivos. No entanto, na serra do mar as forças titânicas da natureza esculpiram precipícios e grotas, vales e espinhaços que são um deleite para iniciados e praticantes de montanhismo. O informativo da agência Carioca Adventure alertava, claramente: nível da caminhada Pesado.
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O Poço Paraíso e Poço das Bromélias passamos logo na primeira hora de caminhada antes de chegarmos à Gruta do Presidente, uma pedra colossal amparada pelo próprio pedestal da montanha que criava a forma de uma caverna, onde supostamente Getúlio Vargas passara.
Pegamos um atalho para a cachoeira Véu de Noiva, uma bela cascata com seus 40 metros de queda livre. Nesse trecho cruzamos por mochileiros menos ousados indo e vindo em ritmo de passeio no parque. Um montanhista autêntico se conhece pelas feições coradas de sol e esforço, pelo suor na testa, pelo tamanho da mochila e pelo silêncio no caminhar. Diferente daqueles que passeiam no parque, tagarelando e gastando o tempo que têm. Trilhar, descobri nesta viagem, é sinônimo de meditar.
Itamarandiba
Retornamos à trilha principal em direção ao mirante da Pedra do Queijo, um pedregulho do tamanho de dois fuscas encavalados que dava para um precipício. Dali a vista era deslumbrante para cidadezinhas que cresciam dentro do vale e não sei por que, mas a música Itamarandiba, de Milton Nascimento, me veio à mente. “Itamarandiba, pedra corrida..como é miúda e quase sem brilho, a vida do povo que mora no vale”…
Meninos e meninas
O grupo em que estávamos e que subia encontra-se com outros – menores, com duas ou três pessoas – que desciam. Paramos no Ajax, uma nascente onde enchem-se os cantis, lavam-se os rostos, e reabastecem-se as baterias com amendoim, barras de cereal, chocolate e qualquer outro alimento que aumente a energia do corpo. Os meninos e as meninas já haviam se separado dos homens e mulheres algumas centenas de metros abaixo e, pelo olhar de Sandro Tanaka, o comandante da expedição, agora chegávamos a um ponto crítico da trilha.
O Parque Nacional Serra dos órgãos é uma coletânea de acidentes geográficos entre os municípios de Teresópolis, Petrópolis, Magé e Guapimirim. Esta nossa jornada integrava, segundo o próprio mapa de programação do Parque, o primeiro dia da expedição Petrópolis – Teresópolis, destinado apenas a mestres e doutores das montanhas. Eu havia acabado de passar no vestibular e tinha uma prova pela frente: a ladeira da Isabeloca.
Ladeira da Isabeloca
A ladeira chamada Isabeloca era uma homenagem à princesa Isabel que andou por Petrópolis e Teresópolis montada em um cavalo no tempo do Império. Ela estende-se por três a quatro quilômetros abruptos, íngremes e a única coisa que se pensa nessas horas é chegar a um lugar plano onde se possa tirar a mochila dos ombros, beber uma água, esticar as pernas e imitar a bateria da escola de samba, dando uma paradinha. A Isabeloca de carinhoso só tinha o nome e não era nada nobre. É um conjunto de escarpas talhadas pelo tempo e pela água da chuva que cavou valetas e voçorocas ao seu redor. “Esta etapa já foi pior. A equipe de manutenção do parque fez uma reforma recente, aterrando alguns trechos e construindo degraus”, explica Sandra Guedes, da Carioca Adventure.
Chapadão
Subir montanhas é contrariar a lei de Isaac Newton”
A força da gravidade dá o seu baile nas montanhas e nos desfiladeiros. Lá, o magnetismo do miolo da terra vai sugando tudo para baixo, enquanto se quer ir para cima. Subir montanhas é contrariar a lei de Isaac Newton. Por volta das cinco horas da tarde chegamos a um lajeado denominado pelos trilheiros como Chapadão. Aqui se tem uma panorâmica em 360º de toda a serra do mar. O local recebe também o gracioso nome de “Graças à Deus”. Um marco estabelece bem as distâncias. Havíamos percorrido até aquela hora 6.4 quilômetros. Faltava 1.6 para os Castelos do Açu, um pedregal-monumento escolhido pela administração do parque para erguer, no ano de 2010, o Abrigo do Açu, destino do primeiro dia.
O Abrigo do Açu
Todo lixo produzido deve ser levado embora”
Ao avistar o Abrigo do Açu, uma casa esverdeada com traços alpinos em sua arquitetura, tem-se um alívio. O abrigo tem dois pavimentos; no superior recebe trilheiros que levaram saco de dormir e isolante térmico para passar a noite, no piso inferior, próximo ao banheiro, oito camas beliches atendem aos montanhistas. O abrigo obedece aos rituais do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, que tem Plano de Manejo e uma gestão que se alinha às diretrizes do Instituto Chico Mendes e ao Ministério do Meio Ambiente. Aqui os trilheiros e montanhistas dormem, tomam banho, se alimentam e partem. A casa é abastecida com energia solar e é administrada por dois ou três abrigueiros que se revezam em turnos de sete dias. O banho quente é cobrado à parte e as refeições podem ser preparadas ali. Todo lixo produzido deve ser levado embora. Ao lado do abrigo há uma área de camping para os mais corajosos.
Solidariedade e amizade
Aparentemente subir montanhas é um esporte individual que requer força física e condicionamento mental próprios para superar obstáculos e ultrapassar limites. No entanto, é importante destacar a fraternidade que se observa entre os trilheiros e montanhistas e no excepcional preparo da equipe da Carioca Adventure. “Os monitores da Carioca Adventure conseguiram nos motivar para seguir adiante. A companheira de jornada Amanda Espíndola me emprestou um bastão. Em uma queda perdi meu relógio e o John Carvalho, da Carioca Adventure, voltou montanha acima para encontrá-lo. Achou e me trouxe! Nota mil”, afirmou o publicitário Paulo Piratininga pela primeira vez na trilha.
Portal de Hércules
Evitamos ladeiras e lajedos que estariam lisos como quiabo”
O acesso ao Portal de Hércules não é oficialmente disponibilizado pela Parque Nacional Serra dos Órgãos, já que se trata de um desvio opcional de quem faz a travessia Petrópolis-Teresópolis, de três dias. A brecha de tempo bom que tivemos nestes dois dias de fevereiro foi providencial para se chegar lá. Evitamos ladeiras e lajedos que estariam lisos como quiabo.
A caminhada é de uma hora e meia e aos poucos o portal vai se abrindo aos sentidos. Surgem de baixo para cima, as pontas das formações mais conhecidas como o Dedo de Deus e o de Nossa Senhora…
“Coroa do Frade, Escalavrado, Dedo de Nossa Senhora, Dedo de Deus, Cabeça de Peixe, Santo Antonio, São João, Agulha do Diabo, São Pedro, Garrafão”, enumera uma a uma, de memória, as montanhas e picos, o líder da expedição, Sandro Tanaka.
O batuque no peito joga energia para as batatas da perna, para os músculos da coxa, para os ligamentos dos joelhos e dos tornozelos que suportam o corpo nessa caminhada diante do espetáculo. O corpo já não sente e a mente se ilumina diante do portal que se abre em deslumbramento.
Atrás desses cumes outras montanhas formam a serra do mar e a metade do Rio de Janeiro naquela manhã esplendorosa, véspera de carnaval. Antes das fotos e das selfies agradeço e me silencio. Se há um mérito em alcançar o portal ele não é meu. Me elevo sobre as nuvens e meu coração batuca como a bateria de uma escola de samba que vai ser campeã.