A vizinha subiu para assinar o livro de ata do condomínio que estava aqui em casa. Veio de máscara. Convidei, não quis entrar porque teria que tirar os sapatos contaminados da rua. Falou comigo a dois metros de distância. Não a julgo mal. Essa é a orientação geral. Fui abaixo buscar a pizza que encomendei – é importante incentivar o comércio local. A distância entre mim e o entregador foi mantida. Na ida ao supermercado, observo, quem passa no sentido contrário afasta o máximo que a calçada permite. Eu faço o mesmo. No dia das mães houve muito menos abraços. Até a descoberta da vacina vamos seguir nos evitando? Devem ser muitos meses, provavelmente mais de ano. Neste longo tempo teremos que lidar com o medo do contágio, a dúvida permanente, a desconfiança do outro, do risco que ele representa, do miasma que vem do exterior trazendo a doença e a morte.
Há dias, António Guterres, ex-Primeiro-Ministro de Portugal e ex-Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, atual secretário-geral das Nações Unidas, fez um apelo global contra o discurso de ódio reforçado com a disseminação do novo coronavírus: “A pandemia continua a desencadear um tsunami de ódio e de xenofobia, de bodes expiatórios e de disseminação do medo”; afirmou.
O chefe da ONU sabe o que diz. Em escolas italianas, alunos asiáticos estão sendo chamados de cinavirus; na França, a comunidade asiática criou a hashtag #JeNeSuisPasUnVirus, para denunciar as agressões que estão sofrendo todos os dias; para alguns argentinos, a palavra coronavírus foi resignificada, expandida, tornou-se sinônimo de chinês; para muitos brasileiros, em cadência com o que pensam muitos norte-americanos, os chineses são sujos, comedores de gatos venenosos e o vírus é chinês, produzido em laboratório – implicitamente com algum propósito hostil aos interesses ocidentais. São fartas as notícias de preconceito aos chineses na Rússia, no Cazaquistão, no Vietnã, nas Filipinas e na Indonésia. É triste que seja assim. Por trás desses ataques, o sofrimento de crianças inocentes, a perda de empregos, os negócios falidos, a injustiça, a indignação e o ódio.
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Na China, agora que são poucos os casos de disseminação doméstica e o contágio se dá principalmente por pessoas que chegam do exterior, os estrangeiros estão sendo perseguidos, afastados de restaurantes, lojas, academias e hotéis. São evitados em espaços públicos e xingados de lixo estrangeiro por alguns locais. Os relatos de maus tratos aos africanos subsaarianos são muitos e há uma crise diplomática em curso entre Serra Leoa, Nigéria, Camarões e não sei mais quantos países da África e a China. Para a diplomacia chinesa o país está sendo vítima de notícias falsas orquestradas pelo governo dos Estados Unidos. Assim são as guerras narrativas. Num país fechado, onde o Estado controla a internet e a imprensa, é fácil o governo convencer o povo daquilo que quer. E se para parte do mundo o vírus é chinês, ao que parece, na China o vírus é estrangeiro.
Acirramento do racismo e da xenofobia em períodos de crises sanitárias não é novidade do nosso tempo. Durante a peste negra, no século XIV, os estrangeiros e os leprosos foram perseguidos. No século XVI, durante a pandemia de sífilis, na Alemanha, os imigrantes franceses foram responsabilizados, na França, os italianos, e no Japão, os portugueses. No início do século XX, a pandemia do vírus influenza ficou conhecida como a gripe espanhola. Durante a epidemia de peste bubônica, também no início do século XX, em San Francisco, os chineses foram perseguidos e seus negócios destruídos e queimados. Na epidemia de febre tifóide, em Nova York, estigmatizaram os judeus. Na década de 80, com o HIV, os homossexuais levaram a culpa. Em 2014, ameaçados pelo ebola, nos Estados Unidos, os imigrantes africanos foram vítimas de xenofobia.
A Covid-19 é ainda muito recente. Por mais que a ciência tenha avançado, e avançou muito nesses dois, três meses, há mais dúvidas do que certezas. Enquanto isso, alguns negam o mal e subestimam suas consequências. Todos queremos, ligeiro, encontrar uma qualquer resposta, alguma justificativa, a mais simples possível, que nos leve para fora da crise. É aí, talvez, que encontrar um culpado – pode ser mais de um –, alguém diferente, distante, estranho, estrangeiro, seja a saída mais fácil para lidar com as incertezas. O problema tem que ser o outro, tem que vir de fora. Lá a ameaça, aqui a resistência. Alguma segurança é necessária, e reconhecer um inimigo comum já traz algum alento e une os que se julgam iguais.
Cada país e cada região escolhe um grupo para culpar. Hoje, os chineses mundo afora, os asiáticos em geral no ocidente e os estrangeiros na China, não são as únicas vítimas de preconceitos. Os judeus são alvo de teorias conspiratórias no Canadá, na Bélgica, na Alemanha e na Hungria, os muçulmanos na Índia, os africanos na Europa mediterrânea. Para muita gente, culpados são os idosos. Os mais velhos não transmitem mais o vírus que qualquer outra pessoa, estão sim mais vulneráveis à doença. Isolados de suas famílias, às vezes em asilos, longe de todos, apreensivos, sofrem muito. Também os ciganos em Portugal estão entre as minorias discriminadas. Chegaram aqui no século XVI, são tão portugueses quanto qualquer outro português. São pouco mais de cem mil e ainda assim, fechados e excluídos, são alvo da demagogia inescrupulosa, de nacionalismos populistas, de terroristas que fomentam o ódio e desdenham das minorias.
Li estupefato histórias de ataques aos profissionais de saúde. Depois dos atos vis do presidente brasileiro, foi a coisa mais repugnante e cruel entre tudo que eu vi na imprensa sobre essa crise. São eles que estão na linha de frente, colocando a vida em risco para salvar da morte gente que eles nem sabem quem são. Na França, um médico encontrou na porta de casa um bilhete deixado por vizinhos, dizia para ele não voltar, que não seria bem recebido no condomínio porque sua presença ali representa risco de contágio para todos. Em Manaus, vi um relato semelhante. Em São Paulo, pessoas vestidas de branco são hostilizadas no transporte público: podem ser profissionais de saúde, representam risco para os demais. Vi comovido cenas de bombeiros, pacientes e familiares a aplaudir os profissionais de saúde. O Banksy, aquele famoso artista de rua britânico, também fez uma bela homenagem: o desenho de um menino que, em meio a outros bonecos de super-heróis, escolhe a enfermeira para brincar. Viralizou, correu mundo, emocionou. É da natureza humana, achamos maravilhosos e somos gratos aos médicos, enfermeiros e a todo o pessoal que está na linha de frente para nos salvar, desde que sejam vizinhos de outros e que não dividam conosco o mesmo vagão do metrô.
É hora de repensar. Somos interdependentes e o vírus pode estar em qualquer um, em qualquer lugar. Ao me proteger eu protejo o outro e, quando o outro se protege, eu sou protegido. É pouco inteligente e injusto imaginar e apontar culpados. Os marginalizados receiam pedir ajuda e, por temerem o desprezo nos hospitais e nos postos de atendimento, tornam-se vítimas fáceis da doença e foco de contágio. E num ciclo vicioso, são mais hostilizados, e menos buscam ajuda, e mais adoecem e mais propagam o vírus. A conclusão é que mais adoecemos todos. Da peste e de ódio. O que esperar dos longos períodos de distanciamento social que vêm pela frente? O que esse vírus vai fazer de nós?