Sylvia Leite – editora do blog ‘lugares de memória’
Na mitologia grega, a memória é personificada por uma deusa – filha dos primeiros deuses do Olimpo, Gaia (Terra) e Urano (Céu) -, denominada Mnemósine. Seu nome vem do verbo mimnéskein, que significa “lembrar-se de”.
Hesíodo nos conta, em sua Teogonia – ou Origem dos Deuses – que Mnemósine é a mãe das famosas musas – ou cantoras divinas -, frutos de uma união de nove noites com seu sobrinho Zeus, que usou um disfarce para seduzi-la. As musas teriam nascido com a função de reger as diversas formas de pensamento então conhecidas e evitar o seu esquecimento. Para isso, tornariam-se inspiradoras daqueles que se aventurassem em suas áreas: Calíope, na Poesia Épica; Clio, na História; Erato, na Poesia Romântica; Euterpe, na Música; Polímnia, na Música Cerimonial; Melpômene, na Tragédia; Tália, na Comédia; Tersícore, nas Danças; e Urânia, na Astronomia e na Astrologia.
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A palavra grega que designa as musas, segundo o professor Junito Brandão, pode estar relacionada a um termo que significaria “fixar o espírito sobre uma ideia, uma arte”. A relação entre essas deusas e o ato de lembrar está presente também na palavra museu, que no vocábulo original grego significa “templo das musas”, e é usada para designar locais em que se guardam – e disseminam – memórias das mais diversas formas de expressão e registro.
O ato de fixar e não permitir o esquecimento está diretamente relacionado com o ato de acessar, em uma situação futura, o conteúdo guardado no momento de seu acontecimento. É assim nos museus, e, principalmente, na ação das musas que lhe servem de modelo. No início da Teogonia, os aedos, ou poetas rapsodos invocam as musas antes de começarem a narrar a genealogia dos deuses. Segundo José Antônio Alves Torrano, é como se a sua palavra cantada – que se confunde com as próprias musas e com as ideias fixadas por elas – lhes permitisse “romper os estreitos limites de suas possibilidades físicas de movimento e visão, transcender suas fronteiras geográficas e temporais , que de outro modo permaneceriam infranqueáveis, e entrar em contato e contemplar figuras, fatos e mundos que pelo poder do canto se tornam audíveis, visíveis e presentes”¹. E essa possibilidade lhes seria conferida por Mnemósine.
A aventura da memória, do ponto vista mitológico, seria, portanto, uma viagem além das fronteiras de tempo e espaço, em busca de algo que aconteceu primordialmente, ou em algum momento cuja qualidade o conecta com o primordial. Se fizermos uma livre associação, veremos que as viagens reúnem acontecimentos – ou a ausência deles – que podem ser fixados pelas musas e acessados pela Mnemósine para que possamos vê-los, ouvi-los e, com isso, revivermos de alguma maneira as sensações que eles nos proporcionaram originalmente.
Sempre que ouço falar em memória, penso em um episódio que me ajudou a entender, pelo menos em parte, a razão das viagens me colocarem em um estado tão especial. Anos atrás, ao sair de uma empresa e receber uma indenização, minha amiga Regina ficou em dúvida se ‘fazia um investimento’ ou ‘gastava tudo em uma viagem’. Ao pedir a opinião do pai, ele lhe respondeu: “viajar é investir na memória”.
Para os mais líricos, a frase do pai de Regina é capaz de surtir efeito imediato, tendo em vista a sua carga poética. Mas o ato de investir na memória pode ter um alcance muito maior do que o puro deleite estético proporcionado pelas palavras e pelos sonhos. Isso porque tanto o deleite estético como os sonhos não se limitam à sua existência em si, mas têm repercussões em todas as instâncias da vida, inclusive no plano que enxergamos como concreto ou puramente material.
Bagagem mental e emocional
Não é preciso nenhum conhecimento científico para sabermos que quando vivemos ou testemunhamos situações marcantes – seja por sua força, por seu ineditismo ou simplesmente por sua integridade -, elas ficam registradas em algum lugar e passam a fazer parte da nossa bagagem mental e emocional. Em outras palavras, passam a integrar o nosso capital imaterial – ou aquilo que, tanto na vida pessoal como na profissional costumamos chamar de ‘experiência’.
Livros, filmes, músicas, danças e peças de teatro sempre nos deram notícias de outras culturas, outros credos, outras geografias, outras geologias. E, de alguma maneira, ajudaram e continuam ajudando na construção da nossa memória, das nossas referências. Mas uma viagem vai além, porque pode constituir uma espécie de livro (ou filme, música, dança ou peça de teatro) em que somos nós os protagonistas.
Obviamente, cada um tem sua maneira de viajar, e isso determina, de alguma forma, uma variação no alcance e na profundidade das vivências, mas basta que estejamos abertos, curiosos e atentos ao novo, ao diferente ou ao simplesmente agradável para que a viagem mais simples se transforme em um grande aprendizado e em um extenso acervo de conteúdos que terão função certa no futuro, com os mais diversos fins. Para os Sufis, por exemplo, guardar na memória os momentos harmônicos e relembrá-los em situações futuras são duas das onze regras a serem observadas no caminho de autoconhecimento.
Viver situações enriquecedoras e guardá-las por intermédio das musas e com a permissão de Mnemósine pode ter nomes e significados distintos nas mais diversas culturas, filosofias ou escolas de sabedoria, mas, ao final, todas levam a um mesmo lugar: a possibilidade de trazê-las ao momento atual, seja por puro deleite – como o que sentimos ao revermos fotos de viagem – seja para ajudarem em processos criativos, psicológicos ou mesmo em escolhas e decisões.
*Sylvia Leite é jornalista e editora do blog ‘lugares de memória’
Referências:
O lugar mítico da Memória (artigo revista Morpheus)
O lugar do indivíduo e crise de memória (artigo revista Darandina)