Na rua do Olival, aquela que segue paralela à antiga rua de São Francisco de Paula, hoje, rua Presidente Arriaga e outros nomes que se intercalam, desde a altura da rua das Janelas Verdes até à calçada da Pampulha, ao pé da Lapa, nos números 65 e 67, na esquina com a rua Ribeiro Sanches, onde, ali, são só escadas, fica um casarão que eu imaginava devoluto.
A rua do Olival é serventia muito antiga. Segundo o escritor e jornalista Norberto de Araújo, em seu livro Peregrinações em Lisboa, publicado em 1939, certamente é anterior à criação da paróquia da Lapa (de 1770). O edifício de números 168 a 172, construção seiscentista ainda de pé, testemunha a antiguidade da via. No entanto, poderá ser bem mais remota, do tempo da ocupação romana. Suspeita-se que talvez fizesse parte do primitivo caminho junto à costa, no cimo das falésias, que ligava Lisboa, então Olisipo, à distante vila de Casais Velhos e ao Guincho.
A origem do nome eu não encontrei. Imagino-o derivado dos campos de criação de gado e cultivo de hortaliças e olivais dos primeiros saloios, quase todos de origem moura que, ao longo dos séculos, após a reconquista cristã, arribaram para as cercanias da cidade. Ao que parece, esse alto formava extensa escarpa calcária sobranceira à praia: clima e solo apropriados à cultura de azeitonas. Robustece a minha tese o fato de que, ao poente, no fim da rua, mais ou menos no ponto em que, a partir de os anos 1950, a trincheira da av. Infante Santo rampeia o penhasco dividindo seu cume em dois, existiu uma grande laje sobre as pedreiras, a Lapa da Moura, e nela, algures mais adiante, uma gruta, a Cova da Moura – da Moura, percebeu?
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Foi justamente a proximidade com essa Lapa da Moura que deu origem ao nome da paróquia – da Lapa –, transformada em freguesia e, por fim, o bairro, inserido noutra freguesia: a da Estrela. Hoje a paisagem reflete pouco ou quase nada esse passado. Depois do tsunâmi que seguiu ao terremoto de 1755, as zonas altas da cidade passaram a atrair as famílias mais ricas. Toda esta encosta – inclusive as pedreiras com lapa e tudo, jazidas de calcário tornadas fachadas, colunas, esculturas e pólvora – deu lugar a um abonado arruamento com palacetes, solares e vivendas.
A rua do Olival é a minha rua. Estou aqui desde 2014; senão morando a todo esse tempo, pelo menos indo e vindo nesse caminho desde então. Nunca havia visto abertas aquelas portadas nos números 65 e 67
A rua do Olival é a minha rua. Estou aqui desde 2014; senão morando a todo esse tempo, pelo menos indo e vindo nesse caminho desde então. Nunca havia visto abertas aquelas portadas nos números 65 e 67; também nunca havia visto gente a entrar ou a sair por ali. Nunca uma luz acesa. Nunca abertas as janelas para a rua ou sobre a escada. A casa parece abandonada desde sempre: está desleixada, desbotada e esquecida. Minha surpresa foi descobrir hoje, somente hoje, que é habitada.
Apesar de modorrenta, a moradia oferecia à rua uma graça especial: uma grande buganvília, certamente duas entrelaçadas, de flores vermelhas e roxas, na primavera, e folhas cor de ferrugem no outono. As plantas trespassavam o teto, desciam sobre o muro até quase tocar a estreita calçada e cobrir boa parte da fachada, tornando-a difícil de distinguir. A calçada naquele ponto, de tão módica, de tão reduzida, tomada pela rama, tornou-se passeio inexistente, chão que ninguém pisa. Mesmo assim, na viela sem movimento, são as flores que fazem mais falta.
Hoje, enquanto procurava vaga para estacionar o carro alugado, passei à porta e, finalmente, vi movimento. Muito movimento: homens trabalhando, serra elétrica e luvas nas mãos, barulho, azáfama, muitos ramos jogados no chão atravancando a passagem dos carros na estrada acanhada. Havia também um grupo parado à certa distância, gente observando a agitação, e vizinhos à janela. Um pequeno acontecimento na travessa pacata. Espremido, passei com o carro desconhecido sem arrancar pedaços de nada, tirei fino dos galhos e da picape bem estacionada rente à parede. Arrisquei-me a olhar para dentro. Observei que as portadas são dos fundos da casa; e que a casa é imensa. Pensei: foi vendida. Demolir não podem. Terão de deixar intacta a fachada, mas irão mexer em tudo por dentro; é quase sempre o que fazem em casos assim. Não percebi que cortavam justo as buganvílias. Vi que desbastavam uma selva e abriam caminho pelo pátio, até ao fundo, onde havia janelas e luzes acesas.
Encontrada a vaga, ainda curioso quanto ao extraordinário evento (feliz de quem pode se preocupar com coisas insignificantes assim), fiz o caminho de volta a pé e, desta vez sem a tensão de não ferir nenhum dos espectadores com os retrovisores nem esbarrar o carro nalgum canto, passei no meio da aglomeração. Já ao longe, compreendi que a ramada no chão e na carroceria da picape – alguma flor extemporânea e muitas folhas e galhos secos – havia sido arrancada das buganvilias.
Triste, olhei para dentro da portada jamais vista aberta e descobri o pátio largo, jardim de inverno da morada que, na noite já caída, conservava luzes acesas, tênue claridade só para os de dentro. Surpreendi-me que ali vivesse alguém e que a casa fosse daquele tamanho. Observei as expressões dos vizinhos na rua; minha decepção não era menor. Talvez deixasse escapar um pensamento alto, altíssimo, compartilhado com todos à volta; talvez fizesse a pergunta diretamente, não sei ao certo como foi. Sei que a senhora que parecia coordenar a poda me respondeu na defensiva: A Câmara mandou cortar! Cortava ou pagava multa de cinco mil euros. Mas por quê?, eu quis saber. Porque, sei lá! Olha, dizem que pode cair o muro, que está a avançar sobre a rua; replicou em tom de revolta. Então, malcontente, quase que só em pensamento, deixei escapar: Mas era tão bonita… E ela, pragmática: Pois olha, paciência, na primavera os ramos começarão a aparecer.
Caminhei sem pressa para casa e, já à porta do prédio, pensei que avançar sobre a rua é fraca razão para sacrificar as buganvílias. Quanto ao muro centenário, parece ter considerável espessura, as plantas oferecerão mesmo perigo de derrubá-lo? Não sei… Não sei o que passa pela cabeça das pessoas. As portadas de números 65 e 67, na rua do Olival, são de fato as entradas de serviço, aquelas sempre fechadas, sem préstimos, nos fundos do solar, acesso em que não entra nem sai ninguém. Resta a velha fachada incúria, agora bem visível, na serventia antiga e desimportante. E nós que aqui vivemos, sei lá se por razoável motivo, perdemos as flores na primavera e o colorido das folhas no outono.
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