Arte Falsificada – por Osvaldo Alvarenga*

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Das notícias que eu leio todas as manhãs: Christian Rosa, 43 anos, artista brasileiro em ascensão – agora já em queda – preso em Portugal sob a acusação de falsificar pinturas de Raymond Pettibon, seu amigo e antigo mentor. A história: Rosa é acusado de ter roubado telas inacabadas do amigo, de tê-las concluído, falsificado a assinatura e as vendido no mercado negro de arte. Sob suspeita, fugiu dos Estados Unidos para lugar incerto. Ainda assim, a namorada, uma modelo austríaca, mantinha atualizado o instagram com fotos do casal “em férias”. Numa dessas fotos – como naquelas em que queremos mostrar o vinho que estamos bebendo –, o rótulo da garrafa de água mineral para a câmera: Mil Fontes. A partir daí, não foi difícil para o FBI localizar o brasileiro e acionar a polícia portuguesa. Agora ele está preso aguardando o julgamento de extradição. Maldita vaidade!

A Iêda e eu também estávamos de férias, em Rovereto, no Trentino-Alto Ádige, no Norte da Itália. No entorno da cidade, há trilhas para percorrer de bicicleta ou a pé, há vinhas, há vestígios de dinossauros, há os Sinos Caídos, em memória dos caídos de todas as guerras e, no centro, o castelo do séc. XV, onde funciona o Museu da Guerra – da Grande Guerra, diga-se –, vários palácios, o Teatro Zandonai, a igreja de San Marco onde Mozart fez seu primeiro concerto na Itália, e há dois museus formidáveis: a Casa d’arte futurista Depero, dedicado ao artista, escultor e designer gráfico Fortunato Depero, nascido em Rovereto, um pioneiro do design contemporâneo, e o MART – Museu de Arte Moderna e Contemporânea de Trento e Rovereto.

Correndo as últimas salas do MART, consumido pelas duas horas e meia de visita, àquela altura, já ansiando pelo almoço e pouco atento às informações ao longo do percurso, surpreendo-me com uma Madonna Con Bambino pré-renascentista, de 1930. Como é? Pergunto-me o sentido de produzir obras renascentistas em pleno séc. XX. Passos adiante, outras duas madonas com o menino, os séculos variam, todas do mesmo artista, Icilio Federico Joni. Como pode ser? Olho à volta. Diversas obras primas dos séculos XIV ao XVI.

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Enquanto me aproximo, leio os nomes: Giotto, Donatello, Giovanni, Pisano e outros mestres italianos menos famosos, encadernações, quadros e esculturas, julgo que são deles, não entendo o porquê daquela exposição num museu de arte contemporânea. Então, leio outros nomes: Giovanni Bastianini, Lino Frongia e Gildo Pedrazzini. Quem são? Avanço uma sala mais, esculturas, muitas esculturas em mármore, essas matizadas por séculos de luz, poeira e fumaça de velas, obras-primas, parecem de cera, e duas estátuas ainda mais antigas (gregas ou romanas?), degradadas pelas intempéries, marcadas, lascadas e partidas pelos séculos e séculos de servidão. São centenas de obras expostas, do período clássico ao renascentista, todas com datas imprecisas entre o final do século XIX e início do século XX. Intrigado, recorro às paredes por alguma explicação. Um único artista criou tudo o que eu vejo na sala: Alceo Dossena. Mais um que eu não conheço. Desnorteado, volto ao início da exposição: “Il Falso Nell’Arte. Alceo Dossena E La Scultura Italiana Del Rinascimento”. À esquerda, um vídeo muito antigo, preto e branco, com as marcas do tempo e cheio de cortes, mostra o artista criando e explicando a sua arte. E ao lado, uma réplica do seu atelier.

Após a Grande Guerra, nas primeiras décadas do séc. XX, enriquecidos americanos, gente endinheirada, escrupulosa na ostentação e carente de cultura, avançaram sobre antiquários e marchands daquela Europa depauperada, ávidos por peças únicas, inestimáveis obras de arte para as mesas de canto e paredes de suas casas e escritórios.

Diz-se que Alceo Dossena, artista que suscita essa exposição corrente até 20 de fevereiro, foi “o autêntico falsificador”. Nascido em 1878, em Cremona, morto em 1937, em Roma, ficou rico e famoso com suas autênticas obras-primas falsas. Autênticas porque Dossena não fazia cópias, criava obras próprias, peças originais. Falsas porque falseava: “era capaz de criar peças de todos os estilos, dos clássicos aos contemporâneos, que foram atribuídas por acadêmicos e diretores de museus aos grandes mestres do passado…”, li algo assim nalgum daqueles textos plotados nas paredes. Ele não era o único. Daí seus colegas de exposição, mestres, alunos, parceiros. Havia mercado para todos. Desde o final do séc. XIX, mas sobretudo após a Grande Guerra, nas primeiras décadas do séc. XX, enriquecidos americanos, gente endinheirada, escrupulosa na ostentação e carente de cultura, avançaram sobre antiquários e marchands daquela Europa depauperada, ávidos por peças únicas, inestimáveis obras de arte para as mesas de canto e paredes de suas casas e escritórios. Tanta demanda inflacionou o mercado; estímulo mais do que suficiente para artistas e artesãos, primeiro, contratados pelos mercadores de arte, depois em associação com eles, produzirem objetos do desejo na medida dos gostos e bolsos dos novos compradores. Dossena talvez tenha sido o mais brilhante de sua geração, daí encabeçar a exposição no MART.

Há boas histórias numa exposição assim. Uma delas com o artista Giovanni Bastianini, nascido em Fiesole, próximo de Florença, em 1830, morto em Florença, em 1868. De admirador da arte renascentista para falsificador foi um passo. Tamanha irreverência e descaramento do artista que, certa vez, produziu um retrato usando por modelo o seu amigo, artista também, Gaetano Bianchi, trajando roupas do século XV. A peça está lá. Outra história, as três “cabeças Modì”, é melhor ainda. Uma farsa burlesca: em 1984, por época do centenário de nascimento de Modigliani, em Livorno, a cidade natal do artista, houve uma grande exposição para comemorar a efeméride. Segundo uma lenda local, em certa ocasião, ainda jovem, o artista teria jogado no Fosso Reali, um grande fosso que há na cidade, incontáveis vezes dragado e limpo, uma cabeça de mulher, obra rejeitada por seus amigos da época. Lenda. Ainda assim, durante os preparativos para a grande exposição, a tal lenda ganhou força e o fosso voltou a ser esquadrinhado em busca da obra. Quatro amigos, estudantes dispostos a fazer troça, resolveram esculpir uma, depois duas, três e quatro cabeças ao estilo das esculturas de Modigliani, usaram uma furadeira Black & Decker para o serviço, e jogaram os blocos de pedra no fosso. Resumindo a longa história, três das cabeças foram encontradas e dadas por verdadeiras. Especialistas de toda a Itália foram chamados para analisar as peças e – salvo um – todos confirmaram a autoria do conjunto. Um catálogo foi feito às pressas, um lugar de destaque foi reservado para o grande achado. Antes, porém, que a brincadeira fosse ainda mais longe, um dos estudantes revelou a farsa. Mas claro, não foi acreditado (isso aconteceu em 1984!). Somente depois de os quatro rapazes repetirem o feito na frente das câmeras, em um programa de grande audiência, é que os experts consideraram plausível que, afinal, as tais cabeças não fossem obra de Modigliani.

Em 1928, quando voava muito próximo do sol, quando então circulava entre os mais influentes conhecedores de arte as suspeitas de que houvesse um tal artista italiano capaz de criar verdadeiras obras-primas gregas, etruscas, góticas e renascentistas, farto dos atravessadores, antiquários e marchands, talvez cansado do anonimato, Dossena abriu o seu atelier e revelou-se ao mundo. Não sei porque não foi preso. Sei que faturou por um tempo, passou a assinar e datar suas obras, seguiu com a produção de peças em estilo antigo e outras ao gosto contemporâneo. Enquanto houve escândalo, a fama de virtuose da escultura manteve em altas as vendas, porém, passado o alvoroço, despenhado do céu, cerca de nove anos depois, o artista morreu pobre e esquecido. Maldita vaidade!

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