Faz, por estes dias, ano desde que o sobressalto chegou aqui em casa. De distante, de notícias da longínqua China, para três casos em França, um na Alemanha, outro na Catalunha e, então, na Lombardia, vilas bloqueadas e pessoas proibidas de saírem de casa, contavam pelo menos 400 infectados, 36 doentes graves e 12 mortos… De lá pra cá chegou num encontro. Não a moléstia, o temor dela. Veio, como é comum vir, da porta aberta e do calor que entra com a pessoa querida. Depois, passada a emoção, a dúvida, o remorso e o encabulamento, por precaução, entramos em quarentena. Felicidade, ninguém doente. Fizemos planos de viagem a Madrid na primavera.
Até março arrancar, a imprensa esforçava-se para encontrar algum contágio no país, mas nessa beirinha da Europa só havia suspeitos. Encontraram dois portugueses doentes no Japão. Já é alguma notícia. Finalmente, no segundo dia, em todos os jornais: há dois casos confirmados em Portugal. No Dia Internacional da Mulher, pusemo-nos em marcha com centenas de pessoas, do Largo de Camões ao Palácio de São Bento; outras eram as prioridades. Distanciamento e uso de máscaras ainda não faziam parte do nosso cotidiano. No dia seguinte, as faculdades de Farmácia na Universidade do Porto e de História na Universidade do Minho amanheceriam fechadas devido ao surto, e Portugal somaria 39 infectados. Atropelado pelos acontecimentos, o Primeiro-Ministro hesitou antes de decretar o encerramento das escolas; em princípio até a Páscoa. Também suspensas, e por tempo indeterminado, as ligas de futebol. Então, tive certeza: está feia a coisa.
No mesmo dia em que a OMS declarou a doença como pandemia, o governo anunciou o estado de alerta em Portugal. Fomos convidados a ficar em casa. Não era ainda obrigação. Procurei e não encontrei máscaras nem álcool gel para comprar. Também o papel higiênico havia desaparecido das prateleiras. Mas por quê? Aprendi uma nova palavra: açambarcamento. Tempos depois, o uso de máscaras passaria a ser exigido nos transportes públicos e em lugares fechados. Mesmo assim, continuei não as encontrando. A Iêda foi ao YouTube e aprendeu como fazer. Picotou uma minha camiseta surrada, que eu gostava de usar, para transformá-la em fraldões de rosto. Reclamei. Madrid fechou os museus. Em seguida, Portugal e Espanha anunciaram o fecho de fronteiras. Perdemos a viagem — passagens e estadia. Escrevo uma crônica. Em Portugal, a primeira vítima fatal. Mais uns dias à frente, o parlamento aprovaria e o presidente promulgaria o estado de emergência. Ficar em casa passa a obrigação; sair só para as compras e pouco mais. São longas filas às portas dos supermercados. Longa também a espera pelas compras on-line. Os entregadores já não vinham à porta, deixavam-nas, lá abaixo, no hall de entrada. São quatro lances de escada, 72 degraus. Jurei: vou maneirar no vinho e na cerveja.
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A televisão pifou. Peças de reposição, chinesas, não havia. Os dias frescos e soalheiros convidam ao banho de sol. As sacadas estão vivas. Descubro que tenho vizinhos. Escrevo outra crônica. Passo muito tempo em contemplação, observo o Tejo, ouço o melro solitário que canta sobre aquela antena — espero as andorinhas que hão de chegar — e deixo os dias correrem. A Iêda escreve e ilustra livros. Serão dez ao longo do ano. Atento a todas as notícias, comparo: ao sexto falecimento em Portugal, o Brasil contabilizava onze mortos e a Itália mais de seiscentos. Sobram incertezas. Do sobressalto ao temporário, cada vez mais permanente… Março terminará com a circulação de pessoas controlada; fechadas por tempo indeterminado as escolas, as praias, os restaurantes, os teatros, os cinemas, os museus e as repartições públicas; suspensos os voos para fora da Europa; e proibidas todas as atividades desportivas e de lazer; trabalhar de casa é opção para quem pode. Em reclusão, tudo é novidade — lá fora e aqui dentro. Atraem-me as notícias, os encontros virtuais entretêm-me. Adapto-me sem demora.
(Mal sabíamos o que viria depois…)
Passado o ano, ano desgraçado para demasiada gente, ano de pesar e de aflição, as dúvidas ainda são muitas. Agora, misturada à alguma esperança que vem com as vacinas, mas também com a grande indignação, tantas vezes ira, diante de governos obtusos, tão despreparados e populistas, e com a violenta confirmação da nossa vulnerabilidade frente à natureza, a resiliência oscila. Às vezes, arrebata-me os sentidos. Outras vezes, é náusea o que sinto, ou ainda pior, há vez em que é o tédio que me assalta. Já não quero notícias. Cansa-me ficar em casa. O corpo está farto desta poltrona em que sento para ler e escrever. O cinza e o frio deste inverno fazem os dias mais difíceis. Sinto falta de andar a esmo, de sentir o ar fresco entrar pelo nariz, de ter conversas banais; sinto falta de perder as horas nalgum bar, de ir ao cinema, de ir ao teatro… Sinto falta da vida como foi.
Se esqueço o mundo, se esqueço a dor dos amigos por tantos que se foram, tantas vezes sem despedidas, e penso só em mim, em como foi o ano para mim, tenho menos a lamentar e mais a bem-dizer: não perdi ninguém do meu convívio, ao contrário, ganhei dois sobrinhos-netos, e mais três estão para chegar; houve formatura, casamentos, residência, doutorado e outras notícias boas; e, ainda que não tenha podido fazer as viagens mais desejadas, conhecemos o Minho e Trás-os-Montes — Gerês, Montesinho e Douro Internacional —, e fomos a uma própria Minas Gerais. Pena, na passagem pelo Brasil, não pudemos estar com todas as pessoas que queríamos; são esses podres ares que a gente se arrisca a carregar… Não reclamo. Constato. São os dias em que vivemos. Por cá, além dos livros, Iedinha aceitou ainda mais desafios, e eu lancei o meu Santos e Sardinhas. Ao final, um ano sem perdas, de introspecção e descobertas. Um ano para nunca mais esquecer.
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