Texto Paulo Atzingen – Fotos: Renato Borges (publicado em 25 de maio)
A capital do Brasil emociona por seus espaços. Vivo, vivemos, exatamente a era em que um dos maiores sonhos arquitetônicos e urbanistas do planeta foi criado, no entanto não sou, não somos contemporâneos de um sonho de cidade, muito menos de país. Somos contemporâneos de um pesadelo, ou de um esboço de nação. Foi dado espaço demais a homens de menos.
Caminho por Brasília e sinto-me feliz por não fazer parte da decadência do poder que dela exala. Sinto-me satisfeito em nenhuma fase de minha vida ter sido cúmplice de negociatas, arranjos, conchavos em troca de um saco de dinheiro. Posso sorver o sonho de quem acreditou um dia neste país e nesta cidade, quando passei por aqui nos anos 80 indo para a alta floresta. A brasilinha dos poetas, dos candangos e dos que sonharam com a Nova Cap; sim, sonharam e chegaram aqui ou por aqui passaram. Como Jobim (o Tom), que nos idos dos anos 60 viu um riacho e perguntou para Vinicius (o de Moraes). “A agua é de beber?” Era. A cidade nascia e junto a ela um clássico da Bossa Nova…
Enjaulado
Andando pelas avenidas largas desta capital vejo o verdadeiro brasiliense. São pessoas simples, de fala cantada (híbrido de nordestino e mineiro em sua terceira geração). Esse brasiliense que conheço é diferente do sofisticado homo brasilis que se enjaulou em um gabinete – tornando-se o político que almeja uma ascensão no poder, ter um mega-salário, regalias regimentais, imunidade vitalícia e aposentadoria imoral.
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Esse brasiliense que conheço tem uma gratidão pela terra que o acolheu ou acolheu seus pais – por isso não é amargo, por isso é manso. Esse brasiliense que conheço é capaz de dar um abraço verdadeiro, sorrir com sinceridade e mesmo sem terno ou gravata, ser elegante com sua rusticidade original. E por ter essas caracteristicas que os libertam, paradoxalmente também os escravizam.
Ser original
Esse brasiliense que conheço não é sofisticado. Sim, ele parou no tempo e deixou de acompanhar as tendências do mundo globalizado. Sim, ele não conhece Miami e não compra bolsa Louis Vuitton. Ele não teve muitas chances porque arrancaram deles os direitos. Nasceu em famílias pobres (a pobreza federal) e o máximo que conseguiu foi morar em uma cidade satélite e viver de programas sociais. Trabalha no ônibus, na venda de doces e biscoitos, no artesanato, no contato direto com as pessoas. Esse ser original que conheço vem das terras vermelhas do DF vender sua produção de abóboras, suas hortaliças; o fruto de um trabalho original… Todos tem uma testa queimada de sol, sulcos no rosto. Representam a estirpe colonial do país, a faceta medieval instalada nas cidades satélites. E indo mais longe no tempo, representam os hebreus nas terras dos faraós.
Decadência
À essa simplicidade nas linhas de Niemeyer e do traçado de Lucio Costa – de uma cruz criaram as asas e de um terreno plano e um horizonte anteviram um novo mundo e um novo homem – foi acrescentada a complexidade humana: os processos, os protocolos e os regimentos – leis e canons gregos – foram incorporados à Kubitschek. E a decadência do sonho começou. Vieram os generais (Castelo Branco, Costa e Silva, Geisel e Figueiredo), e uma nova decadência; depois os nordestinos (Collor e Sarney) outra decadência; depois o sociólogo (Fernando Henrique) nova decadência, depois o operário e a guerrilheira (Lula e Dilma) a decadência em sua forma lata; e agora a decadência elevada a uma potência turbinada por dinheiro de empreiteiras e caixa-dois.
Ah… “as instituições solidificaram a democracia”…ouço o velho político da tribuna defender-se…de democracia vejo um amontoado de prédios recheados de burocracia e regulamentos, servidores servindo-se da Pátria e o brasiliense original suando entre as super-quadras, vivendo do lixo reciclável e orgânico que as mansões enviam para os aterros sanitários… de solidez vejo apenas essa inspiração monumental do arquiteto em seu delírio comunista e do engenheiro em seu ufanismo utópico de construir uma nova Tebas no cerrado.
Individualidade tecnológica
Esta cidade monumental com seus vazios de gente, pistas carregadas de carros e espaços ainda a conquistar e a desbravar próprios de boca de sertões, obedece um ritual de progresso imposto às sociedades que se pensam evoluídas: a individualidade tecnológica (carrões de cinco toneladas levando apenas uma pessoa), a portabilidade egocêntrica (um mundo na palma da mão e a indiferença ao próximo) e os templos do consumo (a compra de objetos inúteis expostos em vitrines sedutoras).
Rios de ganância
Esta cidade que se estendeu à margem do Paranoá trouxe para cá as mesmas necessidades da antiga capital da República; o Rio de Janeiro: iates de três milhões, jatinhos de quatro milhões, mansões de seis milhões e a estranha patologia humana da sede de poder. Rios de ganância, igarapés de usura desaguam no lago Paranoá. O homo brasilis tem fome insaciável, tem pressa de chegar ao topo. Estes espaços de Brasília induzem-nos ao infinito da ambição.
Que essa sede e fome de poder sejam saciados de uma vez por todas. Que as almas sofisticadas desses homo brasilis saciem-se com o magma fervente e sintam-se servidos pelo banquete do holocausto do velho brasileiro. E que um novo homem, um brasiliense original – não puro, porque homem, mas com asas, rompa a casca, nasça e impere sobre esta capital em cinzas.
(Brasília, capital da República Federativa do Brasil, maio de 2017)
* Paulo Atzingen é editor do DIÁRIO DO TURISMO/DIÁRIO DOS HOTÉIS – texto originalmente publicado no blogdoatzingen.