Daniel Munduruku e seu discurso na abertura da WTM Latin America

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Na data em que se comemora o DIA DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL, 19 de abril, o discurso de Daniel Munduruku na abertura da WTM Latin America traduz tudo o que um povo, de qualquer parte do planeta, de qualquer raça ou religião poderia dizer ou ouvir. Daniel Munduruku é escritor premiado, professor, filósofo e mestrando em Antropologia. A seguir transcrevemos os principais trechos de sua fala, confira:

Livre e aberto ao chegar

Quem chega a um encontro, dizem os nossos avós, que quem chega, tem que estar com o coração feliz, tem que estar com o coração aberto, tem que estar com o coração livre para que esse encontro seja bom de verdade é preciso que saiamos dele melhores do que quando chegamos, mais iluminados mais afetados. O encontro só é bom quando a gente ensina e quando a gente aprende, quando a gente fala, quando a gente escuta o encontro é bom quando a gente se torna pessoas melhores.

Outra Perspectiva

Sou parte de um povo ancestral desse nosso país e sendo eu um representante de muitas falas que tem sido abafadas ao longo da da nossa história de 524 anos desde a chegada dos Estrangeiros dos alienígenas desse território, é importante que 524 anos depois a gente possa olhar para o nosso país, possa olhar para o nosso território também a partir da perspectiva dessas populações. Então é uma honra para mim poder fazer essa fala e me dirigir a vocês que são gestores, vocês que são agentes, para vocês que são turistas e que possam também levar essas reflexões adiante.

Um brasileiro, várias falas

Sou Daniel,  um brasileiro nascido no mundo Munduruku; gosto sempre de dizer isso porque nós vivemos num país com uma diversidade cultural e uma diversidade linguística bastante considerável, nós somos mais de 300 povos, falamos de mais de 274 línguas que nós não aprendemos é que portanto, nós deixamos de entender como cada um desses povos se organiza dentro do mundo.

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Seres incompletos

Vocês sabem que cada povo dá uma resposta às próprias angústias existenciais, nós somos humanos e como tal nos separamos da natureza por conta disso, nós somos seres da natureza, mas incompletos, nós somos os únicos que precisamos criar cultura; todos os outros seres não criam cultura porque eles já têm todas as respostas dentro de si;  portanto não precisam descobrir mais nada. Não precisam desenvolver mais nada, eles já estão completos, estão completos porque eles já são a própria natureza e a natureza por si só, ela é completa. Não se pergunta a uma onça o que que ela vai ser quando crescer porque ela já sabe, ela já tem essa resposta.

Poucas perguntas, muitas respostas

Nós temos aquelas perguntas básicas que fazemos, as perguntas são as mesmas as respostas, porém, são diversas nenhuma delas verdadeiras, nenhuma delas errada, todas elas são possibilidades e quais são essas perguntas?.

Quem sou eu, da onde vim, para onde vou, o que é que eu faço nesse mundo? as perguntas são as mesmas em todos os cantos do nosso planeta as respostas variam. E essas respostas servem como uma possibilidade que a gente buscar a nossa completude. Vou buscar o nosso pertencimento a esse lugar chamado planeta terra não existem portanto respostas melhores que outras porque todas elas são respostas possíveis aos dramas na própria existência.

Colonizar pensamentos, corpos, almas

Pensando assim a gente entende que nenhum povo pode ou deveria impor o modo de existir de outro povo, nenhum povo deveria colonizar pensamentos, corpos, almas, nenhum povo deveria impor sobre um outro povo qualquer tipo de comportamento porque as respostas que um povo dá para si são suficientes para seu entendimento de vida e de existência, de caminhos. Eu faço parte de um desses povos. O Munduruku está presente em três estados do Brasil, Amazonas, Mato Grosso e Pará. Provavelmente a maioria de vocês nunca ouviu falar do povo Munduruku.

Palavra ‘Indio”

Mas todos vocês certamente já ouviram falar que existem índios no Brasil e a gente ouviu falar de índios, porque foi nos imposto uma uma forma de tratar os primeiros habitantes, os povos originários assim falados, de uma maneira muito aleatória, ou melhor, uma maneira um tanto preconceituosa um tanto humilhante, porque essa palavra índio foi tantas vezes reproduzida e ainda hoje não diz exatamente quem nós somos. Ela diz o que as pessoas acham que nós somos. Ela fala o que as pessoas aprenderam a nos chamar a dizer sobre nós, na mesma medida em que os colonizadores foram determinantes pela narração de uma história, como nós devemos ser tratados como nós deveremos ser olhados por eles.

Negação

E essa palavra índio, não é uma afirmação, ela ao contrário, é uma negação, porque ela não diz quem eu sou, ao contrário ela nega quem eu sou. Ela não fala da minha ancestralidade, ela fala de um tipo de visão de mundo que é uma visão que procura ser hegemônica e que portanto procura impor o modo de ser, o modo de agir sobre os outros povos. Ao invés de nós aprendermos a diversidade no Brasil, nós simplesmente incorporamos essa diversidade toda numa única palavra, num único conceito,  ou melhor no único pré-conceito. E esse preconceito foi sendo trazidos até nós e foi sendo colocado na nossa mente como um chip, e do qual a gente não consegue se libertar porque ela está tatuada na nossa mente, no nosso comportamento, de modo que quando a gente pensa em povos indígenas, ou melhor quando a gente pensa em índio, a gente pensa numa ficção, a gente pensa num folclore, a gente pensa nos conceitos romantizados ou nos conceitos ideologizados e que aprendemos a reproduzir.

“Índio bom é índio morto”

O dia 19 de abril foi estabelecido como uma verdade para nós e esse é a parte boa porque é uma visão romântica, mas existe uma visão mais ideológica e essa é tão perigosa quanto, porque certamente vocês já ouviram dizer por aí, que o índio é preguiçoso, que o índio é atrasado, selvagem, que atrapalha o progresso e o desenvolvimento, que índio tem muita terra e não sabe o que fazer com ela. Que índio bom é índio morto.

Duas visões

E isso vai sendo impregnado na nossa mente de modo que dentro de nós acaba morando essas duas visões: aquela que nós queremos e aquela que nós não queremos, aquela que nós fazemos questão de manter: o índio legal, né? E aquela que nós não queremos, aquela (visão) que nós não suportamos, porque eles são uma espécie de resistência. Essas duas visões tão impregnadas dentro da gente acabou nos afastando nesses modos de vida, desse jeito indígena de olhar para o mundo e dá a respostas também para os seus dramas da existência, porque não pensa em vocês que nós não temos os nossos problemas, não temos as nossas dificuldades, não temos as nossas confusões e brigas internas porque nós temos.

Qual a diferença?

Mas a gente se pergunta: qual a diferença que existe, portanto, entre o ser indígena e o ser não indígena? Ou o índio e o branco?  Como a gente normalmente fala.  Onde é que está essa diferença, essa diferença pessoal está na nossa compreensão de tempo, o tempo ocidental, que  é um tempo movido pelo relógio. O relógio é uma metáfora que eu estou usando. O relógio, o que anda para frente o tempo todo.

Relógio

O tempo da sociedade ocidental é um tempo que é estabelecido como presente, passado e futuro. O passado ocidental é algo que já se foi, não tem muito importância. O presente é um marco, também não significa nada. O futuro no entanto é o tempo mais buscado desejado, querido pelo ser humano ocidental. Nós estamos, o tempo todo, atrás de um tempo que nós não tempos porque o futuro você sabe, é uma é uma tentativa de dominar o mundo que nós não dominamos e nós educamos no ocidente as nossas crianças para serem seres do futuro.

O que você vai ser quando crescer?

A pergunta principal que nós fazemos às nossas crianças, é: O que você vai ser quando crescer? E se você repararem muito bem, essa pergunta sintetiza absolutamente toda a pedagogia ocidental, nós educamos as nossas crianças para o futuro.

Nós ensinamos para ela, que para elas serem felizes precisam ser alguém na vida. E o que que é ser alguém na vida do mundo ocidental? Normalmente é acumular riqueza, é se dar bem, significa ter coisas, porque o tempo ocidental é o tempo da riqueza, é o tempo da produção, é o tempo da poupança, do investimento, é o tempo de correr atrás do tempo.

Na verdade, nós que somos o futuro de ontem, nós também somos os ancestrais do amanhã e a gente não se dá conta disso. E a gente continua acreditando que o futuro está aberto, a gente continua acreditando que nós somos a possibilidade de ser a mudança e não está errado isso, não está errado. Está errado é o modo como a gente educa as novas gerações. Porque a gente não as compromete.

Nós éramos o futuro

Porque se nós estamos hoje de uma certa maneira meio entristecidos com tudo aquilo que está acontecendo no mundo; se nós estamos um pouco impactados com o aquecimento global, com essas mudanças todas climáticas que estão acontecendo é porque quando criança nos disseram que nós éramos o Futuro. E agora que nós somos do Futuro, o que que nós fizemos por esse mundo pars que ele estivesse vivendo esse momento? Então o tempo ocidental é o tempo futuro e o futuro sempre nos torna egoístas demais, porque vivemos diante dessa afirmação de que pra gente vencer, alguém tem que perder, a gente chegar no topo, alguém tem que abrir mão de tudo.

Está dito aí que se nós formos vencedores, nós temos que derrubar alguns pelo meio do caminho e a vida vira uma eterna disputa.

Tempo da natureza

Para o indígena o tempo, o símbolo do tempo é a natureza e vocês sabem que a natureza anda no sentido anti-horário, ela anda para trás, ela anda para trás não no sentido de estar atrasada, mas no sentido de buscar impulso para se projetar para frente, a natureza ela caminha sempre com passos lentos, a natureza portanto sistêmica, não existe a possibilidade de uma árvore ficar sozinha, a árvore  sempre vai precisar de todos os outros ingredientes, a chuva, a terra, a minhoca, o passarinho.

Parte da natureza

Nós somos indígenas e nos sentimos parte da natureza e passamos a desenvolver um jeito de olhar para o mundo e fazer uma leitura desse mundo a partir dessas elementos que a natureza pode nos oferecer e fui descobrindo que o  ser coletivo é muito mais importante do que ser um ser individual. Ter uma vida em que todo mundo tenha uma certa importância, uma grande importância é mais interessante para poder fazer a manutenção dessa vida acontecer. Daí entre os povos indígenas a gente não faz essa famosa pergunta: “O que você vai ser quando crescer? porque a gente sabe de antemão que uma criança não vai ser simplesmente pelo fato de termos a ser tudo do que precisa ser e o que uma criança precisa ser criança plenamente criança assim como a gente não deseja o outono, que ele não tenha a saudade do verão e nem sinta saudade do inverno.

Sem futuro, só ‘o agora’

O povo indígena é um povo que não tem futuro, não existe a palavra futuro na língua Munduruku. Sabe por que não tem? Porque não se experimentou, a gente cria as palavras de coisas que a gente experimenta. Os povos indígenas sempre acreditaram que existe o passado que é a memória, e existe o presente, que é o agora. A memória serve para nos dizer, estou muito feliz, o presente serve para podermos vivenciar toda essa memória, de modo que são povos que são bons que se organizam, ou nesse tempo passado, ou no presente ou da própria existência. Meu avô, que era um sábio, ele sempre queria nos lembrar disso, ele dizia assim: “ olha meus netos, se o momento atual seu agora não fosse bom não se chamava presente. Meu avô me dizia: Só o agora nos compromete. Só o agora faz com que a gente tome uma atitude de fato.

Proposta pedagógica para o turismo

Quero concluir lembrando a vocês que o turismo deveria ser, certamente o é também, mas deveria ser um mergulho do que há de bonito no mundo, deveria ser uma imersão do que é a beleza natural desse mundo. Deveria ser uma leitura do nosso próprio pertencimento a esse lugar. Conduzir as pessoas por essas belezas todas, seria também, da nossa parte enquanto agente do turismo, deveria ter também uma proposta pedagógica, uma proposta de também ajudar as pessoas sob essa perspectiva do pertencimento…

Muito obrigado!


(Transcrição: Paulo Atzingen – agradecimento a Zaqueu Rodrigues pelo encaminhamento da gravação)

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