Pai deu uma das vítimas brasileiras diz que a França protege suas empresas no tribunal
Treze anos depois de uma das tragédias mais marcantes da aviação civil, terá início nesta segunda-feira (10) um novo – e provavelmente último – processo sobre as responsabilidades pela queda do avião que fazia o voo da Air France AF 447, entre o Rio de Janeiro e Paris, em maio de 2009. A fabricante Airbus e a companhia aérea Air France são acusadas na ação movida no Tribunal Correcional de Paris. Mas para o pai de uma das vítimas brasileiras, o trâmite “não vai chegar a lugar nenhum” porque, a seu ver, a França protege as duas empresas.
Apesar da dor que o caso provoca até hoje, Nelson Marinho promete “ir até o fim” pela memória do filho, uma das 228 vítimas do acidente. O Airbus A330 caiu no meio do oceano Atlântico depois que os pilotos da aeronave não conseguiram retomar o controle do avião após receberem informações desencontradas sobre a velocidade da aeronave, devido ao congelamento das sondas externas do aparelho.
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“A França é muito corporativa. Ela defende com unhas e dentes a Airbus, a Air France, que também é estatal. Nós não vamos chegar a lugar nenhum”, lamenta Nelson, por telefone. “Eles teimam em voar com um avião com defeito, que até agora não foi resolvido. Mesmo que a Justiça francesa bata o martelo em favor da causa, ninguém vai ser preso, porque os diretores já mudaram, e ninguém vai ser punido por isso. Quem foi punido são as pessoas que estavam nesse voo e que perderam suas vidas, e os familiares que ficaram com uma dor para sempre. É insuperável”, critica.
Reviravolta
Em 2021, o Tribunal de Apelações de Paris ordenou que as duas companhias sejam julgadas por “homicídio culposo”. O Ministério Público defendia que as “causas indiretas” do acidente eram imputáveis a falhas das duas gigantes da aviação: enquanto a Air France “se absteve de impor a formação e a informação”, necessária à tripulação, a Airbus “subestimou a gravidade dos defeitos nas sondas” Pitot, que mediam a velocidade, e não agiu o suficiente para corrigi-los”, apontou a Procuradoria.
“Estou nesta briga pelas pessoas que ainda viajam nesse avião assassino, porque ele continua a voar”, denuncia Marinho. “Eu perdi um filho, a gente não consegue nem traduzir em palavras o que é isso. Eu não quero que pessoas passem pelo mesmo problema que eu passei e estou passando”, salienta.
Marinho conta que as famílias das vítimas brasileiras continuam a se informar sobre os desdobramentos do caso, por meio da associação comandada por ele. Mas a maioria se esforça para virar definitivamente a página do acidente.
“Houve até suicídio. Uma senhora não aguentou. É muito dramático”, diz Marinho. “Eu enfrento isso porque prometi a mim mesmo e ao meu filho que vou até o fim. Mas é muito difícil para os brasileiros acompanharem [o novo processo na França]. A passagem para Paris está R$ 5 mil”, afirma.
“Dizer que foi erro dos pilotos é muito fácil”
A associação das vítimas brasileiras conta com assessoria técnica de um ex-piloto da Air France, Gérard Arnoux, que vai acompanhar as audiências na plateia. As famílias dos três pilotos do AF 447, apontados como os únicos responsáveis no processo encerrado em 2019, constituíram-se como parte civil – assim como um total de 476 familiares – e poderão ser chamadas para depor.
As duas outras filhas de Marinho moram na França e também tentarão assistir às sessões. “Dizer que foi erro dos pilotos é muito fácil. Se eu lhe dou uma máquina que não funciona direito, você não vai conseguir operá-la como deveria”, ressalta Keiko Marinho, à RFI. “É como se eu devesse isso para o meu irmão, para completar esse luto. Não tem um único dia em que eu acorde e não pense nele. Ele era o meu melhor amigo”, diz, sem conter as lágrimas.
Os passageiros, comissários e pilotos que estavam a bordo da aeronave eram de 34 nacionalidades diferentes. Entre eles, 22 eram alemães. A mãe de Alexander Crolow, Barbara, planeja assistir às audiências na capital francesa.
“Para mim, é uma questão de moral e ética, não de dinheiro. As grandes empresas também precisam ser responsabilizadas pelo que elas fazem”, sublinhou ela.
Barbara reconhece que as nove semanas de processo serão duras de suportar, mas ela afirma estar “aliviada” que a Procuradoria francesa tenha decidido reabrir o caso.
Após uma longa sucessão de perícias, os juízes de instrução arquivaram o caso em 29 de agosto de 2019. Indignados, familiares das vítimas e sindicatos de pilotos recorreram e, em 12 de maio de 2021, o Tribunal de Instrução decidiu pelo processo por homicídios culposo das duas empresas.
Foco nos detalhes técnicos
O advogado da associação de vítimas francesas Entraide et Solidarité, Sébastien Buzy, disse esperar que a Airbus e a Air France tentarão transformar as audiências em um debate técnico ainda mais complexo, na expectativa de serem isentadas de responsabilidades e “abafar o caso”.
“O papel das famílias das vítimas e do Ministério Público será focalizar o debate nas falhas que podem ter tido Airbus e a Air France e tentar explicá-las claramente”, explica o defensor, à RFI.
Contatadas pela reportagem, as duas empresas optaram por não dar entrevista. O julgamento é esperado para o dia 8 de dezembro.
Até lá, deverão se pronunciar muitos especialistas e pilotos: a 31ª câmara correcional do tribunal de Paris terá de determinar se a Airbus e a Air France, que incorrem em uma multa de € 225 mil, cometeram erros que levaram ao acidente.
Falhas nas sondas Pitot foram registradas nos meses anteriores ao acidente. Após o desastre, o modelo afetado passou a ser substituído em todo o mundo.
A tragédia também levou a outras modificações técnicas no campo aeronáutico e reforçou o treinamento quando o avião perde a sustentação, assim como a gestão no estresse da tripulação.
RFI Com informações da AFP