A homenagem prestada a Gilberto Gil no último sábado (16), durante o programa Caldeirão com Mion, fez jus ao que este mestre ofereceu à cultura brasileira. Sua trajetória como artista negro e baiano atravessou o racismo estrutural e as adversidades históricas com a força de quem transforma opressão em arte.
Por Paulo Atzingen*
Aos 82 anos, Gil continua ungido pela glória de sua criação, uma obra que, mesmo perseguida pela brutalidade do regime militar, se ergueu sobre as pedras do caminho, tornando-se um marco de um Brasil ainda possível.
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Gilberto Gil soube converter os preconceitos mais arraigados do país — desde o racismo até a xenofobia contra nordestinos — em combustível para uma mensagem de paz, resiliência e amor. O que poderia tê-lo silenciado, ao contrário, potencializou sua voz. Sua música, impregnada de espiritualidade pavimentou estradas que levam a lugares mágicos: ao Sítio do Pica-pau Amarelo, ao Tempo Rei, ao Domingo no Parque e a tantos outros territórios de esperança e sonho. Ele construiu uma ponte que transcende insultos e invisibilidades, e hoje encarna a resistência negra e nordestina, consagrada por meio da arte, da fraternidade e de uma sensibilidade que desafia o tempo.
Gil resistiu
A obra de Gilberto Gil nos recorda um tempo em que nos amávamos mais, quando as diferenças eram resolvidas pelo diálogo, pelo debate ou até pelo perdão. Um tempo em que a arte, em sua transcendência, se sobrepunha às divisões ideológicas e partidárias. No entanto, a memória cultural do Brasil sofreu rupturas, e o nível de apreciação pela arte despencou nas últimas décadas. Contra essa maré de empobrecimento cultural, Gil resistiu.
No palco do Caldeirão do Mion, essas décadas de criação foram condensadas em um setlist comovente, um breve vislumbre de uma carreira que ensinou gerações a “andar com fé, porque a fé não costuma falhar”. Gil é, ainda hoje, a ponte entre mundos aparentemente inconciliáveis: o da esperança e o do ressentimento, o do “aquele abraço” ao do isolamento emocional, filho da tecnologia.
A homenagem da Rede Globo, empresa hegemônica de comunicação e que busca resgatar alguns valores perdidos em sua saga econômica, me surpreendeu por sua inteligência ao capturar a essência de Gil. Num país ainda dividido, ela conseguiu evocar o que há de melhor em nós — um Brasil que, um dia, cantou junto as poesias deste mestre. Que esse tributo não seja apenas memória, mas um convite: o convite para reencontrarmos, por meio da arte de Gilberto Gil ou de outros artistas o caminho para o diálogo, para o amor e para a paz.
*Paulo Atzingen é jornalista, fundador do DIÁRIO DO TURISMO.