Análise crítica e dura ao colonialismo de mercado, xeque-mate na cultura transformada em espetáculo para o consumo do turismo, crítica contundente aos estereótipos e clichês usados pela mídia que empobrecem o turismo e não discutem seus verdadeiros problemas. Esses são alguns dos petardos lançados pelo educador, filósofo, pesquisador transdisciplinar Helio Hintze em sua tese de doutorado que originou o livro “Turismo Legitimado: Espetáculos e Invisibilidades”. Com lançamento previsto para 27 de abril no SESC Ideias e organizado pelo Centro de Pesquisa e Formação (CPF), o livro integra as Edições SESC-SP. Inquestionavelmente é um convite à reflexão crítica sobre a indústria do turismo inserida na ótica do nosso sistema sócio-econômico, o capitalismo.
REDAÇÃO DO DIÁRIO (Publicado originalmente dia 12 de abril de 2021)
O DIÁRIO recebeu a edição em PDF (para a imprensa) e o jornalista Paulo Atzingen, editor do DT, após ler a obra de 350 páginas, entrevistou Hélio. A primeira parte é publicada hoje, acompanhe:
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DIÁRIO – Em seu livro “Turismo Legitimado: Espetáculos e Invisiblidades”, o senhor afirma (pg. 123): “Se a cidadania está contaminada pelos códigos do mercado, ela agora é mercado, e cidadania comodificada, enfim, não é cidadania”. Pode explicar aos leitores do DIÁRIO?
O mercado, por meio de seus discursos procura promover uma confusão. A confusão é posta entre dois termos:
Cidadão e consumidor – o mercado quer que cidadão seja sinônimo de consumidor. E não é. Um (o cidadão) aponta para a ideia da cidade, do coletivo, o político – as negociações que temos que fazer para vivermos juntos na pólis… ou outro (o consumidor) é individual, é ele e seu desejo de consumir e de descartar. Não pensa no bem comum… ah! Sim, claro, a reciclagem, a responsabilidade social, o eco(turismo) por exemplo a… a… sim! são discursos que visam a mesclar esses traços de cidadania, de ‘consciência ambiental’, da ‘educação ambiental’ ao movimento do consumo para pinta-lo de verde ou edulcorá-lo se preferir uma metáfora gastronômica. Ao promover esta confusão – o consumidor é um cidadão – o mercado invade o campo da cidadania e a coloniza – e a cidadania colonizada pelo mercado não é mais cidadania, quando muito é um híbrido contaminado pelas marcas do mercado… Hoje o mercado está todo revestido de discursos que o colocam JUNTO da vida das pessoas e, no turismo, isso não é diferente…
DIÁRIO – Em sua obra o senhor afirma que ambas as organizações, tanto a OMT, quanto a WTTC possuem um discurso neoliberal e portanto são uma ameaça à democracia e ao ambiente? Por quê?
No livro está posto. Algumas análises dos discursos desses dois enunciadores. Mas, antes um detalhe: quem são OMT e WTTC? São “O” mercado do turismo… são a reunião dos maiores agentes, dos mais poderosos agentes que exploram (a palavra não é inocente) o turismo no planeta. Mas, Helio, e a OMT não é a reunião dos países, etc…? sim, é mas se na OMT tem 195 países (aproximadamente) quantas empresas têm? Seguramente mais de 400. Ameaçam a democracia quando o WTTC “CONVOCA” os Estados-nação a darem livre passagem para o turista, e ao mesmo tempo “CONVOCA” os mesmo estados-nação a manterem suas fronteiras fechadas para os que não são turistas. O Código de Ética “MUNDIAL” para o turismo da OMT é uma construção legitimadora da exploração do mercado quando diz que o “TURISMO É UM DIREITO HUMANO” – num planeta em que 1.8 bilhão se desloca(va) por turismo e 80 milhões vivem em condição de refúgio (ACNUR). Ambientalmente, a ideia de que o turismo é direito humano (e se é HUMANO deve ser de todos os HUMANOS) é uma mentira, o turismo é privilégio de abastados e mazela para o resto (a palavra resto não é inocente) da humanidade.
DIÁRIO – Na metade de sua obra o senhor levanta uma questão (pg 160). “O segmento econômico denominado turismo ser ciência ou não, há uma luta para dar o certificado de científico” ao turismo. Para você outorgar ao turismo esse grau de ciência é legitimar o sistema de commodity”. Explique.
O Capital colonizou a Ciência. Esta ainda discursa sobre sua pretensa NEUTRALIDADE. Ora, se a Ciência emprestar sua pretensa neutralidade para o turismo, este – como mercadoria – terá uma chancela importante de sua qualidade. Os acadêmicos brasileiro (muitos, mas não todos) ficam numa tentativa louca de legitimar a INDÚSTRIA do turismo como científica, ou trabalham para o capital ou não entenderam nada até agora… isso cansa! Colocar o turismo com uma ciência (em si) é, digamos, tirar a autonomia (ou ainda melhor, criar uma fronteira) para dizer: Antropologia, sociologia, filosofia, ecologia – não se metam aqui, agora é o TURISMO que é uma ciência… isso não vai existir nunca. Olha a bibliografia ‘do’ turismo – antropologia DO turismo, sociologia DO turismo, psicologia DO turismo… analisa bem as obras, qual é a mensagem final da maioria delas? Use minha ciência para produzir uma mercadoria melhor, para conhecer melhor o público, para… enfim, para vender mais.
DIÁRIO – Em sua obra, o senhor faz críticas à Academia quando escreve: “a capitulação total da intelectualidade aos ditames do mercado, que acabam transformando a pesquisa em valores de uso e troca capitalistas”. Comente, por favor.
Acho que respondi acima… a primeira vez que me veio isso foi numa mesa de bar durante um congresso em Portugal, na universidade de Aveiro… você sabe, é na mesa de bar que a coisa acontece… uma pesquisadora de universidade pública, concursada, estável e dedicada ao turismo defendeu a ideia de que o turismo não era ‘só’ economia… debatemos sobre o tema… e ali me veio o lampejo de que sim, a economia neoliberal contaminou a pesquisa (acadêmica) e faz essa pesquisa defender o mercado – ou a pesquisadora não quer ver ou não consegue ver que o turismo é encharcado pela proposta capitalista de converter tudo em mercadoria e todos em consumidores…
DIÁRIO – Hélio, o senhor afirma em boa parte de sua obra que o turista é um produto do mercado, alimenta estatísticas e é peça de retórica da OMT e da WTTC. “Em nossa perspectiva, o turista é uma entidade criada pela OMT. Por que o senhor chegou a essa conclusão?
Isso é curioso, porque a academia que estuda o turismo fala da construção do ‘olhar do turista’ – estou fazendo referência ao Urry (que aliás é uma das poucas obras lúcidas traduzidas pro português e que elabora uma crítica inteligente ao turismo). Bom, a comunidade local precisa ser preparada para receber… quem? O turista… o profissional precisa ser capacitado para atender bem… atender que? O turista – e o TURISTA surge como que um dado da natureza… ele QUER ele SE DESLOCA ele ESCOLHE, ele DESEJA …. mas, pouca gente tem coragem de dizer: ele é construído para poder encarnar o móvel que levará o capital a explorar os ‘atrativos turísticos’ – olha que interessante, ‘atrativo turístico’ vem de ‘recurso turístico’ – algo (uma cachoeira por exemplo) que está lá e que pode ser apropriado pelo turismo e virar atrativo… BOM, o turista é um ser humano qualquer que é apropriado pelo turismo, ganha uma pseudovoz, uma atitude de liberdade infantilizada e passa a se deslocar usando suas milhas-recompensas-pelo-bom-comportamento-como-consumidor… (retomamos aqui a discussão entre consumir e cidadão…)
*A segunda parte desta entrevista será publicada na edição de terça-feira (13).