Lembro o Tob – Crônica de Osvaldo Alvarenga*

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Faz anos, muitos, a mãe deixou seu apartamento em Juiz de Fora e foi viver numa pequena cidade ali perto, em casa ampla com imenso quintal. Vivia sozinha e, como a casa ficasse isolada e o espaço muito para uma só pessoa, mesmo com as visitas frequentes de um irmão que morava na mesma cidade, faltava a ela companhia. Nas emendas de feriados, no Carnaval, na Páscoa, no Natal e nas férias escolares, quase sempre, a casa era tomada pelos filhos, netos ainda criança, adolescentezinhos alguns, noras e genros, que enchiam o espaço todo com muito barulho, um tanto de alegria e um cado de conflito também. Passados esses tais dias, voltava ela à solidão habitual e ao sossego da casa ampla e vazia.

Passado mais alguns meses, numa daquelas visitas, vi o Tob à coleira, preso num cabo de aço chumbado na passagem entre a varanda atrás da cozinha

Num desses feriados discutimos o problema que, para além da solidão, era de segurança também. Um cachorro ajudava: faz companhia e mete medo aos ladrões de galinha. De volta a São Paulo tratei de buscar a companhia para a mãe. Não podia ser um cão qualquer. Havia de ser manso, já que a casa era frequentada por crianças, e havia de parecer feroz, para assustar os mal-intencionados. Um labrador; não havia escolha melhor.

Contei à toda a gente o meu problema. Foi um labrador de seis meses que me apareceu: Tob. Vacinado, bem tratado e com pedigree. O dono estava de mudança para um apartamento e não poderia bem acomodar um cachorro daquele porte. Fui conhecê-lo. Uma graça. Absolutamente preto, pelo brilhante, corpo musculoso, focinho largo, latido forte, e o temperamento de um labrador de seis meses: brincalhão, cheio de energia, alegre e inteligente. Enquanto pulava com as patas limpas de unhas aparadas no meu terno (tive que tirar e esconder a gravata), o dono reprisava as suas condições. Não queria dinheiro. Queria antes assegurar um lar para o Tob; uma casa onde ele tivesse espaço e fosse querido, tratado com estimação como convém à raça – como a rigor convém a todo mundo. Contei a história da minha mãe e foi um casamento perfeito. Acertamos tudo.

Marcada a data, passei para buscar o Tob. Havia comprado a caixa para o transporte seguro dele durante a viagem de sete horas entre São Paulo e a casa da mãe. Comprei também os primeiros 20kg de ração, uns biscoitos em forma de osso para os momentos especiais e partimos felizes. A mãe adorou o Tob. O Tob adorou a casa e aquele tanto quintal. Fez muita bagunça como fazem todos os labradores, e foi ótima companhia. O tempo passava e as notícias ao telefone eram sempre boas. Nas visitas que fazia também. Lembro da intimidade entre eles. Lembro da mãe sentada onde gostava de ficar e o Tob deitado aos seus pés. Outras vezes trazia os seus chinelos. Dormia por ali na casa, acho que na cozinha. Só nos quartos não ia; no mais, todo o espaço era dele.

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Passado mais alguns meses, numa daquelas visitas, vi o Tob à coleira, preso num cabo de aço chumbado na passagem entre a varanda atrás da cozinha e o caramanchão mais adiante, frequentemente usado para refeições quando a casa estava cheia; um caminho de uns 15 metros onde ele podia ir e vir. Estranhei. A resposta foi que o Tob era muito bagunceiro, fazia buracos pelo quintal, e estragava as roseiras, e sujava a casa, e pulava na piscina… Melhor prender. Depois, outro irmão, desejoso de mais agradar a mãe, levou para a casa um filhote fêmea de pastor alemão: é que a mãe gosta mesmo é de pastor alemão; tratou logo de explicar. Até o primeiro cio, foi-se levando. Às vezes soltos pelo quintal, outras vezes presos ambos num canil recém construído. Com o cio, os cachorros foram separados em um novo canil reforçado, mais distante que o primeiro, embaixo da piscina.

De dono da casa a prisioneiro solitário, o Tob quase nunca saía do canil. Às vezes, por comiseração de alguém, era solto por algumas horas e se punha a correr pelo quintal. Como vivia isolado, perdeu o jeito do convívio, e a euforia de estar solto fazia dele, então já crescido, um elefante em loja de cristais: melhor prender. Assim não estraga as coisas e, depois, esse bicho pulando nas pessoas, pode machucar alguém. Com a pastor alemão não era muito diferente, mas parece, ela suportava melhor a prisão.

Corriam os anos. Na bela casa no alto do morro, com vista para a cidade, pomar e grama no amplo quintal, rodeada de pastos, árvores e mato, construíram um viveiro onde prenderam uns tantos passarinhos. Agora viviam presos cães, passarinhos, mãe e os que foram para lá viver com ela. Eu sentia a casa transformada em prisão: de gentes, de bichos, de almas, de sonhos e de possibilidades.

Quando lá ia, e calhava de achar tempo e disposição, tirava o Tob da solitária e, como não podia soltá-lo pelo quintal, levava-o a passear. Descia a rua com ele preso à coleira que eu segurava com força, porque, agitado, o infeliz enlouquecia: queria tudo cheirar, fazer xixi em cada pedaço de cerca, entrar no mato, correr para as pessoas, latir para os outros bichos e, grande como era, assustava as crianças e preocupava os adultos à volta. Quando já não havia mais urina, o Tob fazia um coco líquido, uma diarreia constante, que marcava o caminho e sujava-se todo. Pura excitação por sair daquele buraco, de ver rua, de ver gente, de ter companhia…. Imensa a minha tristeza, quanto arrependimento.

Depois o Tob sumiu. Morreu, foi morto, talvez levado para algum pasto e abandonado. Nunca soube ao certo o seu paradeiro. Antes porém, um irmão levou-o para cruzar. Nasceram filhotes lindos. Minha cunhada ficou com a Nina, única fêmea da ninhada; dourada, tom quase de areia, como a mãe. Teve ela melhor sorte que o Tob. Viveu feliz e dignamente noutra cidade, querida e cuidada, numa casa igualmente grande, com duas crianças e imenso quintal relvado.

Talvez o longo período de confinamento tenha nos habituado a ficar mais em casa. Mesmo com a abertura que está em curso, a Iêda e eu temos saído pouco. E nessa vida doméstica, fui adiando e adiando o dia de deliciar-me com as almejadas sardinhas grelhadas. Foi ontem. Num dia soalheiro, com brisa constante, quente ao sol, fresco à sombra, típico desse finalzinho de primavera, saímos para uma pequena volta e almoço. Foi quando me lembrei do Tob. Tanta satisfação eu senti por estar na rua, tanto contentamento por andar à toa num dia assim; tamanha a minha ansiedade por encontrar logo um restaurante que me servisse a iguaria. Fosse eu cachorro, teria feito xixi em cada poste, em cada portão aberto para a rua, me esfregado em cada touceira nascida nas frestas da calçada, latido e puxado com força o dono preso à outra ponta da minha coleira….

Fosse eu cachorro, teria feito xixi em cada poste, em cada portão aberto para a rua, me esfregado em cada touceira nascida nas frestas da calçada

Extasiado, bebo o vinho enquanto espero o prato. Me entrego à conversa que vai franca e cheia de bem-querer. Finalmente as sardinhas. Ai, como cheiram bem. Ai, como sabem bem. Frescas, grelhadas no ponto, salgadas a jeito, com batatas cozidas, salada de alface, tomate e pimentos assados. Já não lembro ao Tob em nada. Eu sou feliz.


*Osvaldo reside em Lisboa e escreve para os blogs: Flerte, sobre lugares e pessoas e Se conselho fosse bom…, sobre vida corporativa e carreira. Atuou por 25 anos no mercado de informações para marketing e risco de crédito, tendo sido presidente, diretor comercial e diretor de operações da Equifax do Brasil. Foi empresário, sócio das empresas mapaBRASIL, Braspop Corretora e Motirô e co-realizador do DMC Latam – Data Management Conference. Foi diretor da DAMA do Brasil e do Instituto Brasileiro de Database Marketing – IDBM e conselheiro da Associação Brasileira de Marketing Direto – ABEMD, dos Doutores da Alegria e, na Fecomercio SP, membro do Conselho de Criatividade e Inovação.

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