A nitroglicerina destilada que o Lobão usa em seu livro “50 anos a Mil” chama-se palavra escrita, embora o cantor e compositor seja multidisciplinar, reconhecido pelos vários talentos e pelo tamanho das encrencas em que se meteu.
Por Paulo Atzingen*
Lobão consegue nas 448 páginas de seu livro – que teve nova edição lançada em 2020 pela editora LEYA -, expressar em linguagem ágil, divertida e direta a dor e a delícia de ser o que ele foi (e ainda é) para a música brasileira, para o rock nacional e para a própria poesia tupiniquim. Ele colecionou fracassos e prêmios em sua vida de artista impetuoso, crítico e criativo, entre eles ser vaiado e agredido no Rock in Rio de 1991 e receber o Grammy de melhor álbum de Rock de 2007 com o Acústico MTV.
Seu relato de infância carioca nos anos sessenta é quase linear e descreve a típica família classe média que vivia entre Copacabana e Ipanema, no entanto o livro vai ganhando ingredientes explosivos à medida que ele começa a narrar suas aventuras, viagens e parcerias no bronzeado anos 80, na companhias de Cazuza, Marina, Ritchie, Evandro Mesquita, Nelson Gonçalves, Elza Soares e tantos outros.
João Luiz Woerdenbag Filho (esse é o nome de cartório de Lobão) consegue com a ajuda do colega jornalista Cláudio Tognolli – escarafunchar a história das bandas de rock (ou nem tanto) dos anos 80 – narrar como elas se formavam em encontros casuais nas garagens do Leblon, como elas sobreviviam sob a pressão de egos inflados e como essas bandinhas se desmanchavam quando o baterista ou o guitarrista decidia seguir carreira solo.
Lobão foi taxado por muitos e por muito tempo como bandido, iconoclasta, maconheiro e encrenqueiro, mas nessa autobiografia, ao invés de negar todos esses epítetos, não só confirma, mas detalha como esses rótulos se fizeram justificados nele. Lobão, no entanto, vai além e mostra a evolução de um rebelde se transformando em um artista, mostra a evolução de um artista sem causa se transformando em um defensor dos direitos autorais dos músicos e apresenta com detalhes a transformação de um boçal desiquilibrado e arrogante se metamorfoseando em um cara capaz de reconhecer seus erros, burrices e exageros.
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Não, Lobão, não se torna dócil, mas sim um indivíduo loquaz, que expõe sem metáforas suas fraquezas, faz confissões inconfessáveis, assume seus erros, aceita sentar na mesa de quem o ofendeu, chama para o debate pessoas e assuntos que ficaram ressentidas e encalacrados lá atrás e com a mesma sinceridade de seus 20, 30 anos – quando cantava “Eu Não quero mais nenhuma chance, eu não quero mais Revanche”, envolve quem lê de verdade seu livro. Eu li.
Bandeira contra a pirataria
A grande contribuição de Lobão com esse livro, no entanto, foi ele ter sido o primeiro músico e compositor brasileiro a levantar a bandeira contra a pirataria, a favor do direito autoral e defender a numeração dos discos – à época os CDs. Com isso ganhou desafetos, inimigos de profissão e até colegas de trabalho o censuraram.
Em meio a um tiroteio de interesses, Lobão relata atitudes sensatas de amigos músicos e outras completamente despropositadas, segundo ele:
“…Houve declarações de Lulu Santos e Rita Lee que afirmavam ser um absurdo um pária da indústria como Lobão, sem contrato com nenhuma gravadora, ficar levantando uma bandeira de uma classe a que nem sequer pertencia.”
“Respondi aos meu ilustres colegas que, justamente por estar sem contrato com uma gravadora, gostaria de ter uma lei que pudesse fazer jus aos percentuais descritos nas cláusulas, pois, sem alguma forma de quantificação, os percentuais se tornariam completamente abstratos e arbitrários. E que fazia muito gosto de um dia voltar a ser contratado por uma gravadora, sim, pois sempre fui um artista popular e meu lugar seria dentro de uma boa gravadora” (Lobão – 50 anos a mil – pg. 420 – Ed. Leya, 2020)
A iniciativa de Lobão fez a pauta ser discutida no Congresso, colocando frente à frente o direito inalienável dos músicos e dos compositores diante da enorme indústria fonográfica. Como o caldo engrossou não só os músicos foram beneficiados, mas os escritores, poetas, todos os produtores de conteúdo, livros, fonogramas, obras audiovisuais. A obrigatoriedade da numeração de CDs (e obrigatoriedade do código de barras) foi oficializada em 1998 por meio do artigo 113 da Lei dos Direitos Autorais e vigora até hoje:
(Art. 113. Os fonogramas, os livros e as obras audiovisuais sujeitar-se-ão a selos ou sinais de identificação sob a responsabilidade do produtor, distribuidor ou importador, sem ônus para o consumidor, com o fim de atestar o cumprimento das normas legais vigentes, conforme dispuser o regulamento.
Embora poucos saibam, Lobão descreve no livro ’50 Anos a Mil’ de como sobreviveu vendendo em bancas de jornais seus discos encartados, de como precisou recolher-se por um tempo para esfriar sua artilharia de palavras contra os piratas do conteúdo, alguns em transatlânticos, outros em canoinhas anônimas.
Execrado, criticado, ofendido pela mídia e até por pessoas de seu meio, Lobão será sempre lembrado por seus inúmeros sucessos Me Chama, Essa Noite Não, Blá blá blá – Eu Te amo, Vida Louca Vida, Revanche, Décadence Avec Élégance, Corações psicodélicos…
*Paulo Atzingen é jornalista