por João Zuccaratto*
Corria o ano de 1970, auge do período conhecido como Milagre Econômico, proveniente das reformas econômicas promovidas pelos primeiros Governos Militares, no poder desde 31 de março de 1964: crescimento de 10% ao ano e inflação de um dígito. O forte ufanismo expresso em “Brasil: ame-o ou deixe-o!” era total. Ainda mais depois da Seleção Brasileira de Futebol ter conquistado seu terceiro título mundial e trazido a Taça Jules Rimet para cá.
Obras decididas em Brasília, ou mesmo nas capitais dos Estados, eram realizadas a toque de caixa, sem qualquer preocupação com o meio ambiente. Estudos de Impacto Ambiental — EIA e Relatórios de Impacto Ambiental — Rima não existiam naquela época. E, mesmo existindo, não seriam coisas aceitáveis para uma ditadura. Para construir estradas, a grosso modo, era simples: pegava-se um mapa, traçava-se uma linha e tocava-se a obra adiante.
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O caso da Rodovia Transpantaneira seguiu literalmente esse figurino. Com a alegação de facilitar o transporte de gado para os abatedouros no interior do Estado de São Paulo, e de transformar o Município de Poconé em indutor do desenvolvimento no Sul do Estado do Mato Grosso, o Governo local começou os trabalhos. Mas, devido aos recursos escassos, transferiu a responsabilidade ao Ministério dos Transportes, e este adorou a incumbência.
Rodovia Transpantaneira: dique no Pantanal
O ministro era Mário Andreazza, já à frente de projetos enormes, como a construção da Ponte Rio-Niterói, a Rodovia Transamazônica; o asfaltamento de praticamente todos os quase cinco mil quilômetros da BR 101, entre a Cidade de Touros, no Estado do Rio Grande do Norte, e aCidade de São José do Norte, na fronteira do Estado do Rio Grande do Sul com o Uruguai; e assim por diante, maiores expressões do chamado Brasil Grande.
Marcaram uma linha unindo a Cidade de Poconé, no Estado do Mato Grosso, à Cidade de Corumbá, no Estado do Mato Grosso do Sul, e deram mãos à obra. Começaram a trabalhar em 5 de setembro de 1970, já próximo ao fim do período da seca. Enquanto dragas sobre o solo do Pantanal abriam dois valões em paralelo, drenando a parte interna, basculantes com terra buscada a dezenas de quilômetros de distância iam criando um dique ali por dentro.
A única concessão ao meio ambiente foi criar áreas de passagem entre um lado e outro, instalando pontes mais ou menos a cada quilômetro. Faziam as cabeceiras em concreto armado e apoiavam sobre elas pontilhões de madeira. Os trabalhos não alcançaram a velocidade desejada. Mas, vencendo dificuldades de toda monta, inclusive as estações de cheia, a estrada foi estendendo-se vagarosamente, até alcançar seus 145 quilômetros.
Rodovia Transpantaneira: metade do Pantanal
Depois de dois anos de trabalho, lá pelos fins de 1974, chegaram ao Distrito de Porto Jofre, às margens do Rio Cuiabá, divisa com o Estado do Mato Grosso do Sul. Bastava fazer uma grande ponte e continuar indo para o Sul, até à Cidade de Corumbá. Entretanto, não havia mais recursos. A Guerra do Yom Kipuur, entre árabes e israelenses, no final de 1973, levara o mundo a grande crise, devido ao aumento absurdo do preço do barril de petróleo.
Os juros externos foram aumentados, e o Brasil, bastante endividado graças a empréstimos externos, ficou sem ter como arranjar mais recursos. O jeito foi inaugurar o já concluído, sendo batizado de Rodovia MT-060, ou Rodovia Zolito Dorilêo. Entretanto, o nome que pegou, com o qual é famosa tanto no do País quanto fora dele, é Rodovia Transpantaneira, mesmo ela cruzando somente a área do Pantanal situado no Sul do Estado do Mato Grosso.
Passados quase meio século da sua conclusão, de vez em quando aparecem rumores sobre a retomada das obras, completando o trecho que falta para atingir 340 quilômetros. Os mais recentes surgiram a partir da escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e os Jogos Olímpicos de 2016, na Cidade Maravilhosa do Rio de Janeiro, capital doEstado do Rio de Janeiro. A ideia não saiu do papel, e não apenas pela carência de recursos.
Rodovia Transpantaneira: integração ao Pantanal
Nestas cinco décadas, cresceu bastante a consciência quanto ao respeito ao meio ambiente. A Nação se redemocratizou e investimentos como esse só acontecem após grandes debates acerca dos seus impactos sobre o ecossistema. O desastre do início dos anos 1970 foi sendo absorvido pela natureza, praticamente integrando aquela grande cicatriz ao tecido do solo do Pantanal. Até animais, aves, peixes e répteis adaptaram-se àquelas mudanças radicais.
Outro grande debate é quanto à melhoria do seu piso, ainda de terra. Alguns defendem seu asfaltamento, mas são criticados porque isso levaria ao aumento do trânsito e da velocidade dos veículos lá circulando, pondo em risco a vida de animais cruzando a pista. Mesmo na situação atual, são crescentes os atropelamentos, principalmente de cobras e jacarés. Outros defendem seu calçamento com paralelepípedos, excelentes para manter carros sob controle.
Tudo isso porque, se não correspondeu às expectativas dos que a construíram, aos poucos a Rodovia Transpantaneira incorporou-se no imaginário dos aventureiros. Cruzá-la ganhou o status de ícone nos programas de turismo de aventura ou de ecoturismo. E com o Pantanal entrando em moda como destino de natureza, um dos mais procurados em todo o planeta, isso conduziu à instalação de dezenas de pousadas em fazendas situadas às suas margens.
Rodovia Transpantaneira: atração no Pantanal
Aproveitando esse movimento, e também para reparar um pouco os danos causados pela sua construção sem critérios científicos e estudos mais apurados, o Governo do Estado de Mato Grosso a transformou em estrada-parque. E, recentemente, iniciou a reforma de suas 122 pontes — aliás, recorde mundial como a rodovia com mais pontes em toda a Terra —, substituindo seus precários pisos de madeira por plataformas feitas em concreto armado.
Apesar dos avanços vividos nos últimos anos, cruzar a Rodovia Transpantaneira de um ponto a outro ainda guarda riscos. Dependendo da intensidade das chuvas, trechos são interditados. Formada por retas intermináveis, tem apenas um posto para reabastecimento de combustível. Ele fica na localidade de Pixaim, mais ou menos metade do caminho entre a Cidade de Poconé e o Distrito de Pedro Jofre. Mas, às vezes, seus tanques estão vazios.
Muito procurada por grupos fazendo ralis de baixa velocidade nos períodos de seca, pois nestes momentos é possível avistar, de um lado e de outro, bandos de capivaras, garças, gaviões, jacarés, tuiuiús, veados e tantos outros. Os mais sortudos, até mesmo exemplares de onça-pintada. Se, durante o dia, as temperaturas rompem facilmente a barreira dos 35 graus Celsius, à noite podem cair bastante, principalmente durante os meses de inverno.
Outro bom conselho é se manter dentro dos veículos, em caso de problemas mecânicos, até à chegada de auxílio, principalmente em períodos noturnos. Isso evita o susto de contato inesperado com jacarés, por exemplo. Apesar de não haver histórico deles atacando seres humanos, não é bom arriscar. Além do mais, a quantidade de insetos e mosquitos no ar é bem significativa. Por isso, é bastante útil ter às mãos um volume suficiente de repelente.
* João Zuccaratto é jornalista