A manhã de 3 de dezembro de 2020 parecia mais uma quinta-feira rotineira no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Mesmo com a epidemia de coronavírus em plena expansão – naquela data já se registravam 180 mil casos, quase mil mortes por dia – a aviação brasileira enfrentava a crise com valentia. A operação, apesar de seriamente afetada, mal ou bem conseguia se manter, mesmo com patamares muito reduzidos.
por Fábio Steinberg* (Fotos gentilmente cedidas pela GOL)
Um observador mais antenado poderia captar algo diferente naquele dia no embarque da GOL. Começava pelo próprio CEO da empresa, Paulo Kakinoff, acompanhado da mulher e filhos pequenos. Da mesma forma estavam no voo o Vice-Presidente de Operações, Celso Ferrer, e seus familiares, além de Joaquim Constantino, um dos irmãos da família controladora da GOL.
Veja também as mais lidas do DT
A origem deste movimento incomum em Congonhas podia ser vista no lado de fora, na pista do Aeroporto. Uma aeronave Boeing 737 MAX, praticamente sem uso, aguardava os ilustres passageiros. O avião retornava à atividade depois de 20 meses parado. Junto com outras seis aeronaves do mesmo modelo adquiridos pela GOL, fora mantido em solo por questões de segurança.
Aquela viagem representava o epílogo de uma grave crise aeronáutica iniciada dois anos antes. Foi quando ocorreram dois acidentes fatais fora do Brasil com o mesmo tipo de equipamento, então recém-lançado.
Tudo começou em outubro de 2018, quando um 737 MAX da Lion Air, da Indonésia, caiu no mar com apenas 13 minutos de voo, e matou seus 189 passageiros.
Dado o excelente histórico de segurança e qualidade da série 737, iniciada em 1967, ninguém acreditou que a causa do acidente pudesse ser um problema técnico do equipamento. Ficou mais cômodo a Boeing e o mercado insinuarem a falta de perícia dos pilotos.
Só que menos de cinco meses depois outro 737 MAX, desta vez da Ethiopian Airlines, caiu após cinco minutos da decolagem, ceifando a vida de 157 pessoas a bordo.
Os registros das caixas pretas dos dois aviões acidentados demonstraram a desesperadora luta dos pilotos em manter a estabilidade do voo. Foram vítimas de uma série de informações conflitantes nos instrumentos e avisos de perda de sustentação.
Enfim, apareceu o vilão: o mau funcionamento de um dispositivo novo praticamente desconhecido, o MCAS (maneuvering characteristics aumengtation system), que deveria corrigir automaticamente o ângulo da aeronave para não empinar.
Diante das evidências de que algo estava terrivelmente errado com a engenharia do avião, governos e companhias aéreas de todo o mundo resolveram manter os aviões em solo até uma investigação completa das causas.
Durante dois anos, o fabricante norte-americano realizou uma exaustiva revisão do avião, até finalmente obter nova homologação do MAX junto às autoridades aeronáuticas.
Por isto, o voo da GOL de dezembro de 2020 era cercado de tanto simbolismo. Em iniciativa arrojada, representava a tremenda confiança da empresa na qualidade do equipamento.
Foi uma imensa decisão de risco, felizmente coroada de sucesso. O voo transcorreu sem problemas. Mas o que aconteceria com a GOL se algo desse errado? Afinal, ninguém expõe sua vida e da família se existe a menor dúvida sobre a eficácia de um equipamento. Seis dias depois, as seis aeronaves MAX estavam de volta à ativa.
Passado mais de um ano de operação, a GOL anuncia que pretende encerrar 2022 com 44 aeronaves do Boeing 737 MAX 8. Não é pouco. Representa 32% de seu inventário
“A Boeing e a GOL estão juntos desde o nascimento da empresa, em 2001, e desde então adotou a parceria exclusiva com o fabricante. Temos confiança total na Boeing. No caso do MAX, a oferta era de renovação da frota sem altos custos de transição”, explica Celso Ferrer, há 14 anos na empresa, e principal responsável pela sua Operação.
“Quando ocorreram os dois acidentes, fomos um dos primeiros a parar os aviões, até entender melhor o que estava ocorrendo. Após o completo redesenho e atualização do dispositivo pela Boeing, homologação pelas autoridades norte-americanas e brasileiras, realizamos o treinamento de cerca de 1300 pilotos em quatro horas no simulador do MAX em Miami. Só então nos sentimos seguros para retomar a operação com este modelo”.
Celso destaca que deste episódio ficou demonstrada mais uma vez a importância do voo manual, e a necessidade de treinamento das equipes para identificar e corrigir situações fora da rotina. “É preciso estimular o piloto a exercer o papel de piloto”.
No caso da Boeing, a empresa pagou altíssimo preço pelo seu erro. Além dos profundos arranhões em sua imagem de fabricante de aeronaves de alta qualidade e segurança, houve um significativo prejuízo financeiro. Só nos Estados Unidos, entre alterações técnicas, treinamento de pilotos e multas, estima-se um prejuízo de U$ 2,5 bilhões.
Quanto à GOL, não tem do que reclamar. Fez um acordo vantajoso com a Boeing de compensação financeira no valor de R$ 2,4 bilhões por conta da paralização das aeronaves e atrasos nos pedidos. Conseguiu também a instalação de um simulador de voo MAX para a Aerotech, sua unidade de manutenção de aeronaves em Belo Horizonte.
O MAX tem se revelado um sucesso, ao reduzir custos operacionais. Segundo a GOL é 15% mais econômico, gera 16% menos emissões de carbono, e é 40% mais silencioso que seu antecessor, o 737-800 NG.
A viagem de risco de dezembro de 2020 deu bons frutos. Passado mais de um ano do retorno dos 737 MAX à operação, os então 28 aviões do mesmo modelo já haviam realizado 16 mil voos. Foram 33 mil horas de voo, transportando 2,4 milhões de passageiros, sem registro de incidentes.
FABIO STEINBERG é Formado em Jornalismo e Administração. Metade dos seus 36 anos de carreira corporativa foi dedicada à IBM Brasil. Tornou-se a seguir Diretor de Comunicação Corporativa e de Marketing da AT&T Brasil e presidente da Hill & Knowlton no Brasil, até assumir a Diretoria de Relações Externas da Rede Globo de Televisão. Colunista por um ano na revista Exame, é autor dos livros Ficções Reais , Viagem de Negócios e O Maestro. No momento acaba de escrever A Travessia, obra que deve ser publicada em breve. Por dez anos foi consultor em comunicação empresarial e desde então passou também a escrever textos jornalísticos, artigos, e resenhas de livros. Editou a revista Viagem de Negócios e colaborou para a revista Viagem e Turismo e Viagens SA . Atualmente, além do seu blog Turismo Sem Censura, colabora para o DIÁRIO DO TURISMO.
LEIA TAMBÉM: