Faz muitos anos, foi no século passado, um amigo me contou como descobriu que estava velho. Caminhava para um compromisso com tempo de sobra, quando viu, distante, no ponto de ônibus, uma mulher que parecia interessante. Resolveu ir de ônibus. Mais próximo, observou: moça nova; realmente linda. Junto dela, uma criança, um menino de no máximo cinco anos. Malandro velho, palavras dele, sabia que era só agradar o filho para quebrar o gelo com a mãe. Parou e fez qualquer coisa que chamou a atenção do garoto. Puxou conversa e, logo, falava com ela. Conversa de cerca-lourenço, lógico. Segundo me disse, quando estavam quase íntimos, um ônibus virou a esquina, a moça puxou o menino, fez sinal para o motorista e, antes de entrar, já com o filho no colo, educou-o: Juninho, dá um tchau pro vovô.
Outro amigo, também dessa época, me contou que, uma vez, sentado com amigos à mesa de um bar, observou, duas mesas adiante, uma moça vistosa que, sorridente, não tirava os olhos dele. A primeira reação foi olhar para trás e ver se havia ali alguém que pudesse despertar o interesse da garota. Não havia; só a passagem para o banheiro e o balcão. Ela estava mesmo olhando para ele. Conferiu mais uma vez. Comentou com os amigos: é profissional, respondeu um. Puta não é, disse o outro. Ele não achou que fosse. Bolas, a moça estava interessada. Ficou surpreso, mas não achou estranho, vai saber… Deu um golão no terceiro ou quarto chope que puseram à sua frente: mas, afinal, sou um homem ou um rato? Disse baixo, quase só para ele mesmo. Levantou-se. Pediu licença aos amigos e, valente, caminhou em direção a ela. Ainda distante, não sabia se a moça era bonita. Nem pensar em pôr os óculos nessa hora. Mais perto: tem a idade da minha filha, pensou. Ela estava acompanhada de outras meninas da mesma idade, dava para ver, não são putas… foi pensando. A dois metros, a moça levantou-se: é muito gostosa, não é possível, é comigo mesmo? Duvidou. Estava eufórico e, também, inseguro. Houve um segundo de hesitação. Deu mais um passo à frente, e a garota avançou o rosto para um beijinho: oi tio Roberto, pensei que o senhor não estava me reconhecendo…
Lembro de muitas outras histórias assim. É que, dos 32, 33, aos 41, trabalhei próximo de homens mais velhos, colegas entre quinze e vinte e tal anos mais que eu. Eles me tratavam como o caçula do grupo e gostavam de me prevenir sobre o futuro. Zombavam de si mesmos e reclamavam dos inconvenientes da idade madura. Contavam sobre as desilusões com o corpo, os desencontros com as mulheres, a descoberta da maturidade com suas frustrações e inseguranças. Isso, quando estávamos bem, em conversas sem as pressões e rixas do trabalho. Boas conversas. Tenho hoje a idade que eles tinham naquela época. Ainda que me negue a reconhecer, todos os dias ao espelho, enquanto faço a barba, enfrento essa dura realidade. Não quero pensar nessas coisas. Sou um negacionista do tempo. Mas esta semana eu tive a prova cabal. Tornei-me um senhor. Já vamos lá. Antes um esclarecimento.
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Moramos num prédio pequeno. São o chamados “gaioleiros”, construídos à farta para atender a demanda por moradia, em Lisboa, entre o final do séc. XIX e meados do séc. XX. O nome é depreciativo. São edificações que perderam as características e o rigor dos “gaiolas”, projetados após o terremoto de 1755 para suportar grandes sismos. Passados os anos, esquecidos os tremores e, como a cidade crescia e faltava teto, alguém resolveu simplificar o projeto e baratear a obra. A moda pegou. Os “gaioleiros” têm as paredes mestras, externas, geralmente feitas de pedras rijas, muito grossas, resistentes, que sustentam o edifício; as paredes de empena, laterais, sem aberturas, geralmente feitas de tijolos, unem prédios contíguos; e as paredes internas, de tabique, muito finas, pouco resistentes e quase sem isolamento acústico. Não há laje a separar os andares que são pavimentos de madeira, presos às paredes por barrotes, com um pequeno vão entre um andar e outro e, também, praticamente sem isolamento acústico. Nós vivemos no último piso de um prédio assim. Quatro andares, mais o rés-do-chão. Dez apartamentos no total. Cá no alto, vivemos sós quase o ano todo. Meus vizinhos são franceses, e quase nunca estão aí. Vêm para as férias de verão.
Este ano, por causa da pandemia, os vizinhos não vieram. Veio a filha; e trouxe um grupo de amigos: meninas e rapazes na casa dos vinte. Como é normal da idade, sozinhos no mundo, em uma noite tropical de lua cheia, resolveram fazer a festa. E fizeram. Abriram todas as janelas, foram para a sacada, aumentaram o som – da música e das vozes –, riam, gritavam, pulavam, deixavam cair garrafas… Por sorte, o casal de velhinhos abaixo deles está fora. Até meia-noite, a intrusão, saber ocupado meu andar e dividida a lua, incomodou. Até uma da manhã, tirou-me a concentração na leitura. Depois das duas, sem dormir, ponderava com o travesseiro: são jovens, felizes com o verão, felizes com a liberdade… Às três da manhã, ainda sem ter pregado os olhos, Iedinha também não, resistimos. Acendi a luz de cabeceira, tentei ler. Ela olhava as notícias no celular. Eles gritavam, batiam portas, riam muito, riam muitas vezes, riam e gritavam cada vez mais alto… Às quatro, acabou a consideração. Levantei-me e, como senhor que sou, emburrado, descalço e com as roupas de dormir, atravessei o corredor. Bati à porta dos vizinhos. Ouvi um corre-corre. Depois silêncio. Esperei. Nem um pio. Toquei novamente a campainha. Um rapaz louro, com o dobro do meu tamanho, abriu a porta. Veio só. Do alto da minha maturidade, falei grosso: são quatro da manhã, tenham paciência, vocês não estão sozinhos no mundo, há gente precisando dormir, comportem-se… Coisas assim. Essas coisas que dizem os velhos rabugentos para os jovens. Ele, muito solícito, pediu desculpas, disse que não voltaria a acontecer. Respondi num resmungo, “espero que não” ou “acho bom”, não lembro, e voltei para a cama.
Os vizinhos ainda estão por aqui. Nunca mais ouvi barulho vindo de lá. São bons meninos. E eu… Eu já não sou o mesmo.